A ousadia de "Espelho da Vida"

A audiência não anda nada boa para as novelas atuais de todas as emissoras. Os baixos índices acabam fazendo jus ao fraco conjunto da obra de muitas produções, mas não todas. "Malhação - Vidas Brasileiras", na Globo, é um fracasso e já perdeu várias vezes para o "Cidade Alerta", da Record, e isso nunca havia ocorrido na história do seriado adolescente. Merece, o enredo é péssimo. "O Tempo Não Para" teve um início de sucesso, mas os índices minguaram junto com a história da trama. "Verão 90 acabou de estrear; é cedo para análises." "O Sétimo Guardião" é um fiasco e a produção, infelizmente, tem contribuído muito para isso. "Jesus", na Record, nunca emplacou e, apesar de alguns bons momentos, a trama se arrasta. Já "As Aventuras de Poliana" enfrenta todos os problemas comuns aos folhetins infantis do SBT: queda de audiência em virtude do excesso de capítulos (serão quase 500). Mas "Espelho da Vida" é a única que tem feito por merecer um Ibope muito maior.

Após um início arrastado e com poucos acontecimentos relevantes, afastando o público, Elizabeth Jhin deslanchou seu enredo --- dirigido com competência por Pedro Vasconcelos --- e a novela tem se mostrado imperdível. A história sempre teve potencial. Apaixonada pela doutrina espírita, a autora já abordou o tema da reencarnação em "Escrito nas Estrelas", "Amor Eterno Amor" e "Além do Tempo". Agora não é diferente. Ou melhor, é. Isso porque Jhin não teve medo de ousar na atual produção e apostou em uma viagem interdimensional como mote central de seu folhetim. Ou seja, inseriu elementos explicitamente fantasiosos em um enredo realista e com grandes doses de espiritismo para explicar a missão/karma de cada personagem. Confuso? Para o telespectador que assiste uma vez ou outra provável. Mas para quem acompanha sempre nem um pouco.

A autora usou a mesma premissa de "Além do Tempo", mas com uma narrativa ainda mais corajosa. Na primorosa novela exibida em 2015, a história se iniciava no século XIX e todos os personagens reencarnavam 150 anos depois. Foi uma ousadia que deu muito certo. Agora, Jhin resolveu contar o passado e presente concomitantemente. Os dois enredos vêm sendo desenvolvidos com maestria e sempre apresentando paralelos que provocam um bom impacto.
A maior genialidade de todo esse processo é colocar a mocinha revivendo sua vida passada através da viagem pelo espelho da aterrorizante mansão de Júlia Castelo. No caso da protagonista, inclusive, ainda há o mistério em torno de sua personalidade. Afinal, Cris (Vitória Strada) é que está se deparando com um mundo novo em 1930 na pele de Júlia. A verdadeira Júlia talvez só surja quando outro personagem conseguir viajar para o passado.

E a novela vem presenteando o público com ótimos capítulos, repletos de boas cenas tanto no passado quanto no presente. A recente entrada de Daniel (Rafael Cardoso), reencarnação de Danilo, grande amor da vida de Júlia Castelo, movimentou o enredo e tem sido muito interessante acompanhar sua terapia com a psicóloga Letícia (Letícia Persiles), reencarnação de Maristela. A cena em que o fotógrafo contou sobre seu sonho com um menino que o chamava de pai (André, seu filho com Júlia), por sinal, foi emocionante. A maior duração de Cris no passado também tem proporcionado conflitos cada vez mais atrativos, vide o desespero da personagem com o estado de saúde de Piedade (Júlia Lemmertz) e seu plano para fugir com Danilo. Os momentos românticos dos mocinhos ainda expõem a química de Rafael Cardoso e Vitória Strada. Vale destacar ainda as hilárias tentativas da empregada Bendita de ajudar o casal. A atriz Luciana Malcher está genial.

Felipe Camargo é outro nome que merece menção em virtude do maior destaque do tenebroso Eugênio Castelo. O personagem de 1930 é aquele vilão que transborda maldade e o ator provoca medo com sua atuação precisa. A cena em que o coronel espancou Padre Luis (Ângelo Antônio), para o desespero da esposa, foi impactante. E o mesmo ator tem divertido na pele do 171 Américo no presente. As sequências com Ana Lucia Torre (Gentil) são inspiradas. A vilania cada vez maior de Gustavo Bruno (João Vicente de Castro) também vem resultando em grandes sequências com Dora (Alinne Moraes), explicando o porquê do sofrimento de Alain no presente. No passado, ele e Eugênio foram os grandes responsáveis pelas dificuldades da relação dos mocinhos. A presença do espírito obsessor Felipe (Patrick Sampaio) em 2019 é outro ponto positivo recente. O afogamento de Isabel na cachoeira, provocado por ele, aterrorizou,  assim como o instante de prisão da vilã no portal do espelho. Ou então a quase queda de Priscila (Clara Galinari) perto do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro, sendo salva por Daniel. E, claro, o enigma em torno do assassinato de Júlia Castelo segue prendendo a atenção e provocando várias teorias entre os telespectadores. Não por acaso, a novela das seis é a que mais repercute atualmente ---- também é a segunda produção mais assistida na Globo Play, perdendo apenas para o "BBB 19".

Todavia, a maior ousadia da atual produção é a questão envolvendo Daniel. Que outro autor, na história da teledramaturgia nacional, inseriu o mocinho no enredo em plena reta final? Nenhum. É preciso, inclusive, desconsiderar folhetins que fracassaram com o casal protagonista e tiveram alterações no rumo do romance. O caso da atual trama é resultado de um planejamento preciso de Elizabeth Jhin. Até porque Danilo sempre esteve presente no enredo, mas na maior parte do tempo era considerado apenas uma ''ilusão'' da mocinha. O seu amor alcançado apenas através da viagem no tempo. E a entrada tardia do personagem faz todo sentido. Afinal, se Cris o encontrasse no presente perderia imediatamente a vontade de seguir viajando até o passado para provar a inocência do amado ---- para que perder tempo em uma época que não pode ser mudada se já achou seu amor infinito? Ela precisa cumprir sua missão de descobrir o verdadeiro assassino e impedir que o ciclo trágico se repita. Pela primeira vez há uma expectativa gigantesca em torno do encontro dos mocinhos de uma história que está chegando ao seu fim ---- algo que só é comum em início de qualquer folhetim e, ainda assim, quando é bem construído, sem declarações súbitas em poucos dias de trama.

"Espelho da Vida" vem se mostrando um novelão e merecia o dobro da audiência. É uma pena que os índices estejam baixos, ainda que tenham reagido nas últimas semanas. Elizabeth Jhin tem apresentado para o público uma produção de extrema qualidade e que exige atenção de quem assiste ---- isso, inclusive, explica a fuga de parte do público acostumado a tudo mais mastigado. Tem sido um prazer acompanhar a saga de Cris Valência em busca de justiça e do seu amor infinito.