A novela é um dos melhores trabalhos de Manoel Carlos e tudo o que o autor melhor desenvolve está ali: o cotidiano da classe média alta do Leblon, os tradicionais barracos familiares, uma Helena que faz tudo pela filha, uma vilã elegante e debochada, enfim. Não por acaso tem feito um grande sucesso no "Vale a Pena Ver de Novo", desde que começou a ser reprisada no dia 29 de abril, substituindo "Cordel Encantado". Também teve uma ótima audiência nas duas vezes que foi reprisada no Canal Viva, em 2010 e 2017. O bom retorno do público é muito merecido. É um novelão da melhor qualidade.
Mas é preciso ressaltar os vários conflitos da história que eram normais na época e atualmente não são mais tolerados. O próprio texto, sempre elogiado pelo refinamento de Maneco, contém declarações que hoje soam absurdas. Um bom exemplo foi até cortado na reprise da Globo provavelmente porque a cúpula da emissora achou não apropriado para os dias atuais. Mas deveriam ter exibido justamente para comprovar como a sociedade evoluiu com o tempo.
A cena em questão é um confronto entre Helena (Regina Duarte) e Laura (Vivianne Pasmanter). A mãe de Eduarda (Gabriela Duarte) retrucou da seguinte forma um comentário debochado da vilã dizendo que Eduarda deveria ser mais avançadinha: "Avançadinha, sei. Pelo visto você acha mais bonito uma moça casar como você vai casar um dia. Rodadinha, usadinha, sambadinha... Né, amorzinho". A patada, claro, era para lavar a alma do público, mas em 2019 seria bem mais fácil ficar ao lado de Laura em virtude do machismo descarado da declaração de Helena. Uma mulher não pode ter uma boa experiência sexual antes de casar?
Outro caso que desperta indignação é o do núcleo de Wilson (Paulo César Grande) e Márcia (Maria Ceiça). Ele é um sujeito violento e racista. O casamento tem uma grave crise por conta da gravidez da mulher. Isso porque ela é negra e o marido não aceita ter um filho da mesma cor ou mestiço. As brigas são constantes e Wilson é repugnante. Em uma das muitas brigas violentas do casal, Márcia chega a ameaçá-lo com uma faca para não apanhar. Porém, no final da trama (desculpe pelo spoiler, mas todo mundo já viu) eles ficam felizes e realizados. O pior é que a harmonia só acontece porque a criança nasce branca de olhos claros. É um festival de equívocos. E na época não houve qualquer estranhamento. Esse contexto despertar revolta hoje em dia prova que, aos poucos, as pessoas foram se dando conta dos absurdos em torno do racismo e da violência contra a mulher. Esse final seria inadmissível em 2019.
Mais um perfil que provoca uma inevitável reflexão é Marcelo (Fábio Assunção). O personagem é considerado o 'galã' da história, sendo disputado constantemente por duas mulheres: Eduarda e Laura. Porém, todas as suas atitudes são dignas de um vilão de folhetim e na época não houve qualquer estranhamento. Arrogante, mimado e agressivo, o rapaz nunca respeitou ninguém e jamais aceitou ter suas vontades contrariadas. Mesmo namorando Eduarda, não fazia questão de afastar a ex e sempre destratou os irmãos, Leonardo (Murilo Benício) e Milena (Carolina Ferraz). Também nunca foi simpático com Helena e fazia questão de se mostrar superior.
Para piorar, Marcelo ainda protagonizava brigas tensas com a esposa, chegando até a agredi-la fisicamente. Tapas e empurrões eram comuns nos embates. Aliás, as agressões também atingiam Laura. Ele chegou a empurrá-la na piscina, tentando afogá-la, após ter descoberto uma armação da ex para acabar com seu casamento. Ainda chegou a ameaçá-la com uma espátula afiada durante uma discussão no escritório da empresa. O mais inacreditável nem era a insistência das duas em disputá-lo e, sim, o não incômodo do telespectador diante de tais situações.
Na época, inclusive, nos primórdios da internet comercial no Brasil, aconteceu a primeira campanha contra um personagem de novela. Os internautas, revoltados com o comportamento mimado de Eduarda, criaram um site em que as pessoas podiam manifestar seu ódio e enviar mensagens pedindo a morte da filha de Helena. Ela, realmente, era insuportável no início da novela. Maltratava o pai alcoólatra, era grossa com a mãe e sentia um ciúme doentio de Marcelo. No entanto, ele era (e sempre foi) infinitamente pior. Até porque a personagem amadureceu com o tempo e seu marido só regrediu. Mas contra ele não houve campanha alguma. E a redenção do personagem promovida por Maneco foi do nada.
Atualmente, Marcelo seria visto como um vilão, ao lado de Branca Letícia de Barros Mota (Susana Vieira), a megera inesquecível desse sucesso. A sua felicidade ao lado de Eduarda seria simplesmente inimaginável e o desfecho sofreria alterações. A bela e antológica cena gravada no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro ---- com Marcelinho passeando com seus dois pais e suas duas mães ----, seria com Helena, Atílio (Antônio Fagundes), Maria Eduarda e César (Marcelo Serrado), o médico apaixonado pela filha da protagonista que foi tratado feito um nada durante toda a história. É até absurdo lembrar daquele fim e constatar que um sujeito agressivo, desrespeitoso, machista e arrogante teve um final feliz.
Aliás, Atílio não seria visto com bons olhos hoje em dia. O personagem era um típico galanteador e, mesmo envolvido com Helena, gostava de manter Branca e Isabel (Cássia Kiss) --- ambas apaixonadíssimas --- por perto. Da metade para o final da trama, inclusive, traiu Helena com Flávia (Maria Zilda Bethlem), a melhor amiga da então esposa. O mais inacreditável foi a quantidade de justificativas machistas de todas as mulheres da novela amenizando as traições e os comportamentos dos homens. Marcelo e Atílio, por exemplo, eram sempre defendidos. Enfim, há várias situações no folhetim que nos dias atuais teriam outra percepção. Impossível citar uma a uma. Não parece um período tão distante, mas já se passaram 22 anos desde a estreia da produção.
"Por Amor" é um clássico da teledramaturgia e seu sucesso no "Vale a Pena Ver de Novo" é merecido. Após várias reprises de novelas relativamente recentes, finalmente a Globo decidiu reexibir um folhetim mais antigo. Está sendo recompensada. E a percepção do público sobre a história ter mudado tanto apenas reflete a evolução da sociedade, ainda que uma parte dela pareça ter regredido nos últimos anos. O comportamento dos telespectadores sempre será um excelente 'termômetro' para analisar a forma como a população encara determinada questão, o que é muito bom. Reprises como essa ajudam a perceber melhor isso.
28 comentários:
Seus textos sobre Por Amor são ainda melhores. Parabéns.
Sérgio, parabéns pela análise das histórias de "Por Amor" (1997) sob a percepção dos comportamentos da sociedade dos dias atuais. Certas atitudes de alguns personagens da novela seriam inaceitáveis em 2019 até mesmo na teledramaturgia, creio eu. Só um detalhe: a segunda exibição de "Vale Tudo" (1988) no Canal Viva não foi em 2017, e sim em 2018.
Guilherme
Seus textos são sempre deliciosos.
Olá, tudo bem? Em 97, eu já criticava esses pontos. Nunca fui admirador do Marcelo. Eu adorava a Maria Eduarda (e ainda adoro). Para mim, ela teria que ter ficado com o personagem do Marcelo Serrado. Abs, Fabio www.blogfabiotv.blogspot.com.br
Sérgio, concordo com tudo que você disse. Por Amor é realmente um novelão(ela e Bom Sucesso são as únicas que eu não perco um capítulo)! Durante os anos 90 e 2000, o público acreditava que os melhores personagens de uma novela eram os vilões(os maniqueístas ao extremo) ou estavam no núcleo cômico, por serem engraçados e trazerem animação á novela, enquanto as protagonistas são consideradas chatas por estarem sempre sofrendo e chorando. Mas Por Amor é uma grande contestadora dessa máxima, pois é justamente o núcleo principal(Helena, Eduarda, Atílio, Marcelo) e o da mansão de Branca que proporcionam as melhores e mais marcantes cenas. Então, é uma pena Maneco tivesse que criar núcleos de pseudo-humor insuportáveis, como o do triângulo Magnólia, Oscar e Genésio, só para que quando os dramas de Helena, Eduarda e cia ficassem demais, a história tivesse algum plot "divertido" pra alegrar e acalmar o público do sofá. Esses perfis só se salvam pelos talentos de Elizângela e Tonico Pereira, pois a relevância de ambos na trama é nula, além de as cenas serem repetitivas. Outra coisa: o núcleo da Meg também era um saco no início da novela. A mãe de Laura e Natalia só aparecia cuidando da cadelinha Inés(que ela ama como uma filha caçula) em cenas irrelevantes. Só a partir da metade da novela, quando passou a se preocupar mais com a obsessão de Laura por Marcelo, é que Meg ganhou mais destaque e Francoíse Forton fez cenas maravilhosas ao lado de Viviane Pasmanter, Júlia Almeida e Ricardo Petraglia(que também conseguiu crescer como Trajano).
E por último: como o público da época amava a Laura e a achava suprema e maravilhosa??? Uma criatura sem amor próprio, sem orgulho próprio, que passou a novela correndo se rastejando atrás de um macho! E de um macho escrotíssimo, o que é pior! A trama dela se resume a isso e nada mais.
Felizmente, a cada reprise dessa novela, a gente vai desmascarando coisas que eram normais nos anos 90 e não são mais em 2019
Uau, que texto!!!!!
Sérgio,belissima reflexão q vc fez sobre´´Por Amor´´.em 2002,quando a novela foi reprisada pela 1ª vez,pouco pude assisti-la,pois tinha 6/7 anos e estudava à tarde(em 1997 eu tinha só dois anos).hoje,cara,estou com 23 anos-e mesmo tão jovem,sei o quanto os comportamentos abusivos,do Wilson com a Márcia,do Marcelo com a Eduarda e a Laura.vendo essa novela hoje,consigo ter uma percepção de como era tratado o machismo naquela época,o que muitos jovens como eu,dificilmente Sérgio,conseguem entender.
Já disseram que você é foda?
me desculpe, mas acho por amor um saco, que novela chata, histórias do cotidiano não me interessam, quero histórias com heróis e vilões (mas vilões mesmo), saudades de cordel encantado.
Sérgio, uma boa notícia via site da Patrícia Kogut: Mariana Lima integrará o elenco da novela "Em Seu Lugar" (de Lícia Manzo), substituta de "Amor De Mãe" (de Manuela Dias) na faixa das 21h15min.
Guilherme
Sérgio, descobri na coluna de Flávio Ricco, no site do UOL, que Márcia Prates (criadora da sinopse original de "Liberdade, Liberdade" (2016)) dividirá a autoria titular da próxima temporada de "Malhação" com Priscila Steinman. Já sabia que Paulo Silvestrini será o diretor-geral da fase (Aliás, ele o fez maravilhosamente na icônica "Malhação - Viva A Diferença" (2017).), mas ainda anseio por outro nome que não o de Ricardo Linhares para a supervisão-geral dela.
Guilherme
Maravilhoso!!
Crítica perfeita!
Engraçado que, desde 1997, eu tenho essa percepção. Sempre fui contra os embustes (Marcelo e Wilson).
Nunca engoli a mudança de Marcelo (do nada).
Sempre vi Helena como machista e uma anti heroína (com traços vulcânicos mesmo). Seu amor por Eduarda é doentio.
E mesmo parando o quê passou com Helena, Atílio agiu como um canalha .
Já sei que vc achou a Helena da Vera Fisher a melhor. Eu gostaria de saber o que você achou dessa Helena de Por Amor? É que ela é muito controversa. Tô assistindo pela primeira vez e o texto tem muitos diálogos machistas, mesmo. Mas ainda bem que agora isso é notado. E Eduarda só foi insuportável no começo. Eu soube do site: Eu odeio Eduarda. Assim, pensei que tivesse sido uma vilã asquerosa. Só que não. Assistindo a novela, agora, vejo que nem insuportável, era de fato. Ela amadureceu e ficou muito legal. Seu único defeito foi ter perdoado esse Marcelo. E também tô ligado que a Branca não saberá da troca dos bebês e não aprovo isso. Seria interessante ver Branca criticando essa descoberta. Ah, e também acho que Lídia deveria saber que foi Branca a culpada pela prisão de Nando. Queria ver um embate entre Lídia e a vilã. O autor desperdiçou esses ótimos acontecimentos, optando por deixar de fora. Mas no geral, acho a novela ótima. É a primeira novela que eu vejo do Maneco que realmente seja boa. Vi Em família, mas essa foi fraca demais. Adorei o texto e ouvi dizer que Eta mundo bom será a substituta. Acho desnecessário. Não precisa reprisar essa novela tão cedo, mesmo sendo ótima. Preferia Laços de Família porque nunca assisti antes e adorei conhecer o estilo de Manoel Carlos, que prioriza o cotidiano dos personagens. Enfim, parabéns pelo texto.
Mt obrigado, anonimo!
Valeu, Guilherme.
Obrigado, anonimo.
Entendo, Fabio.
Comentário excelente, anonimo!!!!
Valeu, Victor.
Parabéns, Matheus!
Valeu, anonimo.
Tudo bem, Danilo. Eu ja acho Cordel insuportável da metade pro final com 900 sequestros.
Feliz, Guilherme!
Obrigado, anonimo.
Obrigado, Fernanda. E endosso seu comentário.
Obrigado, Matheus. Essa Helena é a mais controversa de todas e há momentos que parece até vilã...Eu acho a personagem cansativa. E passiva. Ela defendendo Marcelo é asqueroso... E concordo que vários plots foram desperdiçados, como esses que vc citou...Tb acho que reprisar Eta Mundo Bom não precisa. Mt recente.
Merece destaque o cantor francês Gilbert que cantava Aicha da novela Por Amor. Ele fez sucesso como Ezequiel e pai da Ana Paula Arósio na novela Esperança da Globo. A atriz que fez a esposa do Gilbert na novela Esperança, e a Eliana Guttman e fez sucesso como a Madre Superiora na novela Carinha de Anjo do SBT. Na trilha sonora de Por Amor, o Roberto Carlos cantava Abrazame Asi, e a dupla Donato e Estafano que estouraram com Estou Enamorado que se tornou a versão de Estou Apaixonado que foi sucesso com a dupla Joao Paulo e Daniel, a dupla Donato e Estafano cantava Mi Dios Y Mi Cruz da novela Por Amor, sendo quem 2001, o saudoso cantor Jerry Adriani gravou e fez sucesso como a versão de Tudo Me Lembra Voce. Estou falando que era bons tempos das novelas marcantes como O Rei do Gado, Mulheres de Areia além de boas atuações de atores que eram atores mesmo, e sem falar dos bons tempos dessas musicas em que falavam mais de amor, de união e de amizades por um mundo melhor diferentemente de hoje.
Essa novela merece um remake ou mesmo uma continuidade. Como estariam hj Helena e Atílio e o filho criado c Eduarda e Marcelo. A Branca e os seus filhos. Meg e seus netos inclusive caninos. Lídia e Orestes. Enfim tempo de boas obras essas sim eram as verdadeiras Donas do Pedaço junto que a novela Bom Sucesso Escrita por Rosane Svartman e Paulo Halm e muito melhor que trama de "A Dona do Pedaço" do Walcyr Carrasco
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