A pergunta no título desta crítica parece um ato claro de homofobia. Mas na realidade é um questionamento cada vez mais pertinente diante da hipocrisia que a atual cúpula da Globo que comanda o setor de teledramaturgia, chefiada por Amauri Soares e José Luiz Villamarim, vem abordando os relacionamentos homoafetivos na ficção.
Junho foi o mês da visibilidade LGBTQIAP+ e a emissora é a única das redes brasileiras que pode ser classificada como progressista, ainda que não em sua totalidade. Mas o conservadorismo tomou conta do canal desde que houve uma mudança no comando do setor de entretenimento, ainda que de uma forma não tão explícita. E tudo foi sendo feito de forma camuflada, mas acabou escancarado em "Vai na Fé" (2022), novela das sete de sucesso de Rosane Svartman, por conta das várias censuras aos beijos gravados pelos dois casais gays da trama e que eram sempre cortados na hora da exibição.
É importante lembrar que a temática nunca foi tratada com liberdade na Globo, tanto que os romances homoafetivos nas novelas eram sempre abordados de uma forma discreta e sem beijos. Os autores nem podiam escrever cenas do tipo. Mas o primeiro veto público a um beijo ocorreu no último capítulo da novela "América", de Glória Perez, em 2005.
A autora escreveu a cena, os atores Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro gravaram, mas não foi ao ar. E ficou por aquilo mesmo. Somente nove anos depois que o 'tabu foi quebrado' graças a Walcyr Carrasco, que fez o Brasil torcer pelo casal Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) em "Amor à Vida", de 2013. O folhetim serviu como uma abertura de portas para uma maior liberdade nas produções posteriores.A evolução foi se encaminhando aos poucos, a ponto de beijos entre duas mulheres e entre dois homens irem ao ar até na "Malhação" e em novelas das seis. Tudo parecia cada vez mais aceito, tanto pelo público quanto pela cúpula da empresa. Mas, assim como foi acontecendo na história do país, com o crescimento da extrema direita e dos conservadores, o retrocesso se firmou e vários passos foram dados para trás na teledramaturgia da Globo. É algo perceptível. Ainda que os casais homoafetivos protagonizem beijos, é sempre uma ou duas vezes no máximo por novela e com uma duração de menos de cinco segundos. A única exceção recente foi com o casal Ramiro (Amaury Lorenzo) e Kelvin (Diego Martins) em "Terra e Paixão", mas somente porque Walcyr Carrasco tem força o bastante na emissora para peitar os poderosos. Não é o que ocorre com os demais autores. Vide o que acontece nas produções inéditas atuais.
Em "Garota do Momento", novela das seis recém-terminada, o namoro de Guto (Pedro Goifman) e Vinicius (Elvis Vittorio) foi destruído de uma forma gratuita e que em nada serviu ao roteiro da trama de Alessandra Poggi. A autora retratou com delicadeza todo o processo de aceitação do filho de Anita, (Maria Flor) até a descoberta de um amor, e o público vibrou nas redes sociais pelo romance. Mas os dois só trocaram um selinho de menos de três segundos e com um jogo de sombras para não mostrar tanto, algo recorrente em qualquer cena de beijo homoafetivo --- é tudo com uma luz sombreada ou com cortinas atrapalhando a visão. Para culminar, Vinicius resolveu viajar para os Estados Unidos porque o seu pai, que o tinha expulsado de casa por causa da sua condição, estava doente e queria sua companhia. E foi embora. Simples assim. Depois da saída do personagem, Guto perdeu todo o destaque que tinha e ficou avulso na história até o fim. Na penúltima semana, surgiu um novo personagem para ficar com ele, sem qualquer construção e nem beijo teve.
Em "Vale Tudo", Manuela Dias enchia a boca para dizer que o casal lésbico agora ficaria junto e não sofreria a censura da versão original. Só que na verdade, em 1988, o par nem chegou a enfrentar rejeição do público porque os autores Gilberto Braga, Leonor Brassères e Aguinaldo Silva mataram Cecília para uma abordagem importante a respeito da questão financeira envolvendo um relacionamento gay. Uma mulher não podia deixar sua herança para a sua esposa porque o casamento civil não era liberado e as relações quase sempre camufladas. Algo que hoje em dia já está bem estabelecido, mas na época não existia lei alguma. Portanto, a nova abordagem no remake era bem-vinda, até porque a autora colocou as personagens adotando uma criança. No entanto, Cecília e Laís nem parecem um casal na história de 2025 e, sim, duas amigas solteiras que moram juntas e resolveram criar uma filha. Não há quase toque entre elas. O pior é que tudo ali é superficial, incluindo a profissão de Cecília porque ninguém sabe se ela trabalha no Ibama, em uma agência secreta de fiscalização ambiental ou se é agente federal, já que surgiu armada atrás de traficantes de animais silvestres. Tanto que, por causa de sua vida arriscada, sofreu um atentado e quase morreu em um acidente de carro, provocado por bandidos. A personagem não morreu e entrou em coma, mas sumiu por um tempo. Já Laís desapareceu e foi encontrada em uma ilha em menos de 24 horas em uma situação que até hoje não deu para entender. O drama pela guarda da filha deixou de existir porque Marco Aurélio (Alexandre Nero) passou a ignorar a existência da sobrinha, após um período de pura obsessão pela criança. Nada ali fez qualquer sentido. Agora as duas aparecem esporadicamente em cenas aleatórias cozinhando.
Já em "Dona de Mim" é cedo para uma maior análise porque a novela de Rosane Svartman acabou de começar. Ainda assim, ficou visível que beijo entre Ayla e Gisele (Luana Tanaka) são proibidos até então. Tanto que as duas ficaram propositalmente atrás de Filipa (Cláudia Abreu) no instante em que se beijaram rapidamente durante uma festa de aniversário surpresa para Samuel (Juan Paiva). Porém, neste caso há uma abordagem muito mais crível de uma relação porque as personagens realmente parecem ser um casal. Houve até uma sequência bonitinha em que Sofia (Elis Cabral) perguntou para a irmã mais velha se ela e a esposa teriam uma filha um dia. Foi importante a abordagem de uma criança normalizando aquela relação. Resta torcer para que ao menos nesta obra as barreiras sejam quebradas ao longo dos meses. Isso porque, vale lembrar, a produção das sete anterior, a deliciosa "Volta por Cima", também enfrentou problemas de corte. Uma cena em que Gigi (Rodrigo Fagundes) sugeriu um momento de sexo a três entre ele, Roxelle (Isadora Cruz) e Chico (Amaury Lorenzo) foi exibido nas 'cenas do próximo capítulo', mas eliminada no dia seguinte. E foi só uma piada do personagem. O ator até protestou sem seu Instagram na época. Também é preciso ressaltar que Gigi só beijou Bernardo (Bruno Fagundes) na reta final da novela e em uma cena bem rápida. E Rique (Márcio Machado), que tinha um namorado misterioso, nem essa chance teve porque a relação foi exposta no último capítulo, mas sem direito a beijo. Um abraço foi o bastante.
A nova novela das seis, "Êta Mundo Melhor!", está no ar há menos de um mês e a trama de Walcyr Carrasco e Mauro Wilson trouxe alguns personagens de "Êta Mundo Bom!". Alguns já morreram ou partiram, mas outros permanecem no enredo e um deles é o doutor Lauro (Marcelo Argenta). No sucesso de 2016, o personagem teve um romance escondido com Tobias (Cleiton Moraes) na reta final. Agora resta saber como a relação será abordada, uma vez que Tobias também estará na nova história. Mas não será nada surpreendente uma ausência total de afeto entre os dois ou até uma mudança de rota diante do que tem sido visto na teledramaturgia da emissora.
Já o Globoplay merece elogios pela liberdade muito maior em cima de suas produções, vide a elogiada "Guerreiros do Sol". A novela demorou dois anos para ir ao ar, mas valeu a pena a espera. A trama esbanja qualidade, tanto no elenco quanto nos personagens, na fotografia e no texto primoroso de George Moura e Sérgio Goldenberg. E um dos vários acertos é a abordagem do romance entre Jânia (Alinne Moraes) e Otília (Alice Carvalho). As personagens já protagonizaram várias cenas de beijo e de sexo, sem qualquer censura e como qualquer casal heterossexual em uma boa história. Também vale citar a relação entre Cheiroso (Rodrigo Garcia) e Zé do Bode (Kelner Macêdo), ainda que o romance não tenha se concretizado. Só é lamentável constatar que ambas relações seriam censuradas na Globo.
É uma pena observar tamanho retrocesso na teledramaturgia da maior produtora de novelas do mundo e que já tinha progredido tanto com histórias corajosas e bem escritas. Porém, do jeito que está, é até mais honesto vestir a roupa do conservadorismo, assim como fazem suas concorrentes, e acabar de vez com a abordagem das relações homoafetivas nos folhetins. Porque a hipocrisia já está de bom tamanho.
3 comentários:
Ainda teve o beijo de Fernanda Montenegro! Pra mim, esse caso foi o divisor de águas. Eu lembro que o público ficou realmente chocado com o beijo de duas idosas logo no primeiro capítulo!
Uy, te mando un beso.
Acho que não há que dar ênfases a esses pares.
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