terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Racismo e a pouca diferença entre ficção e realidade

Em julho deste ano, Maria Júlia Coutinho, que se destacou em 2015 na previsão do tempo do "Hora Um", sendo promovida para o "Jornal Nacional", foi vítima de ataques racistas na internet. Já em novembro, a vítima da vez foi a atriz Taís Araújo. E, poucos dias depois, as atrizes Cris Vianna e Sheron Menezzes foram os novos alvos dos criminosos. Milhares de negros sofrem preconceito todos os dias no país e há séculos, ou seja, nada disso é novidade. Tanto que a teledramaturgia aborda esse assunto constantemente e várias novelas já levantaram a questão, que infelizmente está longe de acabar.


E os casos recentes que aconteceram com as quatro figuras conhecidas mencionadas apenas comprovam que há pouca diferença entre ficção e realidade. Ainda que alguns considerem o tom do racismo explorado em algumas obras 'exagerado' ou 'forçado', a verdade é que o assunto é apenas exposto da forma como ele infelizmente é. E foram muitos folhetins que exploraram a questão racial, tanto que nem tem como citar todos. O preconceito é exibido em função da ficção (retratando também a sociedade, obviamente) desde o surgimento da telenovela e da dramaturgia no geral.

Atualmente, por exemplo, "Além do Tempo" vem abordando o preconceito de uma forma explícita e competente. Na primeira fase da obra de Elizabeth Jhin, ambientada no século XIX, Raul (Val Perré) era um ex-escravo que vivia sendo ofendido por Bento (Luiz Carlos Vasconcelos) e Pedro (Emílio Dantas). Na época, claro, o racismo era vomitado com 'orgulho' e nem era considerado crime.
Já na segunda fase da novela, passada nos dias atuais, o mesmo personagem sofre com a discriminação, principalmente depois que se apaixona por Gema (Louise Cardoso), repetindo o ciclo da vida passada. Queiroz (Zécarlos Machado) não esconde seu nojo pelo negro, mas consegue 'camuflar' seu preconceito evitando proferir palavras 'explícitas'. Só que Bento, sem a 'esperteza' do outro, chegou a xingá-lo. Mas, desta vez, foi preso por injúria racial, passando uns dias na cadeia.


A temática está sendo muito bem colocada pela autora na atual novela das seis. E outros folhetins que exploraram o assunto neste ano foram as fracas "I love Paraisópolis" ----- através da psicóloga Patrícia (Lucy Ramos), chamada de preta por Soraya (Letícia Spiller) ---- e "Babilônia" ---- por meio de Paula (Sheron Menezzes) e Regina (Camila Pitanga), que protagonizaram algumas situações de clara discriminação. Mas, além das produções citadas, não tem como esquecer de outras histórias que exploraram bem o racismo.


Em "Da Cor do Pecado" (2004), o tema serviu como pano de fundo para a rivalidade entre mocinha e vilã. A ótima história de João Emanuel Carneiro foi protagonizada por Preta (Taís Araújo), que se apaixonava por Paco (Reynaldo Gianecchini), provocando a ira da então noiva do mocinho, a víbora Bárbara (Giovanna Antonelli). A primeira loura diabólica do autor proferia constantes ataques racistas, chamando a rival de 'neguinha' e 'crioula'. A abordagem foi feita da forma mais crível possível e ainda serviu para provocar bons embates entre as personagens. Aliás, Taís foi a primeira mocinha negra da Globo, depois de ter sido a primeira protagonista negra da teledramaturgia em "Xica da Silva", exibida na extinta Manchete ---- a trama de Walcyr Carrasco, inclusive, também teve o racismo como um dos assuntos, até porque a escravidão era o foco central.


Um outro ótimo exemplo é "Lado a Lado". A primorosa novela de Cláudia Lage e João Ximenes Braga, ganhadora do Emmy Internacional, explorou, entre muitos assuntos pertinentes, o preconceito que os negros sofriam no período pós-abolicionista e como vários deles conseguiram um lugar para morar através da construção de casas de alvenaria em morros, cujo 'aglomerado' foi chamado de favela tempos depois. A intolerância da vilã Constância (Patrícia Pillar) em relação ao laço de amizade firmado entre a filha Laura (Marjorie Estiano) e batalhadora Isabel (Camila Pitanga) era um dos pontos do enredo, muito bem desenvolvido. Lázaro Ramos também foi protagonista de várias situações com o seu Zé Maria, além de Milton Gonçalves (intérprete do Afonso, um ex-escravo), Sheron Menezzes (Berenice), entre outros. Houve até a representação de um momento marcante na história do país, quando jogadores jogaram pó de arroz no rosto de um jogador negro, o 'embranquecendo', para que o mesmo pudesse participar da partida.


Até mesmo a infantil "Carrossel" explorou a temática através da crueldade que Maria Joaquina (Larissa Manoela) fazia com Cirilo (Jean Paulo Campos), menino que era completamente apaixonado por ela. Grande parte do desprezo que a patricinha tinha pelo menino tinha como razão o fato dele ser negro. E vale lembrar que a versão original mexicana, exibida pelo SBT entre 1991 e 1992 ----- cujos personagens eram interpretados por Ludwika Paleta e Pedro Javier Viveros ----, era bem mais 'forte' na questão das humilhações, uma vez que na época não havia tanta restrição do Ministério da Justiça através da Classificação Indicativa, que nada mais é do que uma censura disfarçada. A abordagem em histórias infantis, infelizmente, também não podem ser consideradas 'mera ficção'. O preconceito existe em todas as idades e sempre influenciada pelos mais velhos.


O racismo é um mal que ainda está longe de ser aniquilado e talvez nem seja, lamentavelmente. O que aconteceu este ano com Maju Coutinho, Taís Araújo, Sheron Menezzes e Cris Vianna é apenas um triste retrato da sociedade brasileira. E é sempre importante que a teledramaturgia retrate a questão, mesmo que as novelas não tenham obrigação alguma de educar a população --- afinal, isso é missão das famílias. Muitos folhetins, além dos mencionados, já exploraram o preconceito racial e vários outros ainda abordarão esse assunto. Afinal, nota-se que há pouca diferença entre ficção e realidade.

28 comentários:

Kika disse...

Parabéns pelo brilhante texto!

Unknown disse...

Algo a comentar...

Sabe Sérgio, o Brasil é uma país que passou longos séculos onde os negros passaram pelo regime da escravidão. A partir do final do século 19 é que começou um "processo" de libertação, repito, "processo" de libertação que já conta com apenas 127 anos.

Ou seja, toda essa realidade que vivemos hoje são sequelas de uma realidade profunda que os nossos negros atravessaram por longos e profundos séculos de escravidão, e que, infelizmente, ainda vão respingar por alguns tempos aí pela frente.

Entretanto, no que concerne a teledramaturgia, talvez já esteja na hora dos nossos autores mudarem um pouco a forma de tratar da temática. Já notou que são raras as vezes que vemos nossos negros protagonizando as tramas? A grande maioria faz o papel do bandido, do pobre marginal, da empregada da casa. Outros tantos ganham destaque quando fazem uma novela de época, representando nossos negros nas senzalas e nas humilhações da casa grande.

Com raras exceções, vemos um ator negro interpretando um papel de um rico industrial, de um médico bem sucedido, de um galã conquistando o coração da mocinha, da dondoca com uma empregada branca, e por aí vai...

Digo isso, porque nem sempre uma forma de se combater o preconceito racial é mostrar nas novelas situações da vida real. Como novela é uma obra ficcional, os autores podem usar da licença poética, e criar personagens negros bem sucedidos e retratar o mundo como nós queremos que ele seja, e não apenas como ele é.

Afinal, é ou não é possível haver diferenças entre ficção e realidade?

Talvez esse seja um caminho alternativo...

Abraços

Anônimo disse...

pra completar o comentário de fsilva é só lembrar os papéis de Chica Xavier e Zezé Mota, sempre empregadas domésticas ou escravas em novela de época. A Cris Vianna já foi uma empregada doméstica e quase todas os outros papeis são de mulheres pobres e da periferia. A mesma coisa a Sheron Menezes. E o que dizer de Milton Gonçalves, Lázaro Ramos, Clea Simões, Priscila Marinho, Sérgio Menezes, Fabrício Boliveira, Rafael Zulu, Léa Garcia, Flávio Barauque, Jonathan Haagensen, Ana Carbati, entre outros, muitos nomes desses alguns tem que buscar no Google pra saber quem são, já que é muito difícil ve-los em papel de grande destaque.

Anônimo disse...

ÓTIMO TEXTO!

Heródoto disse...

Muito apropriado esse texto falando de racismo e das novelas que tratam e trataram do tema. Você citou bons exemplos e realmente nem dava para citar todos. Parabéns!

Gabriel disse...

É realmente revoltante q casos como esses aconteçam e eu simplesmente não vejo outra explicação a não ser q essa escória da internet queira aparecer. Não sei mas para mim parece tão irreal q as pessoas ainda tenham um pensamento tão atrasado, claro q o racismo ainda está impreguinado na nossa sociedade ainda mais em atitude e discursos velados e deve ser tão combatido quanto mas o nível de babaquice nesses comentarios de internet é surreal.
Dando um exemplo mais global, recentemente tivemos a estreia do novo episódio de star Wars relançando a franquia nos cinemas depois de tantos anos com um novo trio de personagem principais sendo uma mulher, um negro e um latino, o q é genial afinal é um novo star wars para uma nova época com mais representatividade as diferenças, ainda assim tiveram vários comentários machistas e racistas e até uma tentativa de boicotar o filme.
É mt bom ver a representatividade dos negros nas crescendo nas novelas mas acho q alguns autores ainda acabam reservando mt para atores negros papéis de empregadas ou ladrões ainda temos q melhorar.

Pedro Bertoldi disse...

Olá Sérgio!
Gostei muito do teu texto!
Acho que o racismo,assim como o machismo, a homofobia e tantas outras questões devem ser expostas na teledramaturgia. Mas por mais que eu reconheça a importância das obras que tu colocou e Mister Brau, como negro, fico extremamente triste quando vejo as novelas reforçando esteriótipos. Por exemplo, algum personagem vai ser assaltado e quase sempre o figurante escolhido para fazer o papel do assaltante é negro. É algo aparentemente "pequeno" mas que reforça um paradigma.
Enfim, era isso!!! Abração querido!

Anônimo disse...

Excelente o seu texto. Mas discordo dos comentaristas que falam que escalam atores negros para ladrões ou empregadas. Na vida real 95% dos traficantes e marginais são negros assim como as empregadas domésticas. É apenas uma retratação da realidade.

Pedro Bertoldi disse...

Eu prefiro acreditar que o Anônimo acima está brincando pois me recuso a acreditar que ele reproduza um discurso tão ultrapassado de propósito.

Unknown disse...

Gostei da escolha e da abordagem do tema "racismo", Sérgio. Infelizmente, ele existe no Brasil, mesmo velado. E foi graças a pioneiros como Ruth de Souza, Milton Gonçalves, Antonio e Camila Pitanga, Zezé Motta, Lázaro Ramos, Taís Araújo e outros que os atores negros- passaram a ganhar papeis importantes na TV.

Anônimo disse...

Não é um discurso ultrapassado, Pedro. É apenas um discurso sem hipocrisia. Por isso tem tanto racismo no Brasil porque as pessoas que deveriam se mostrar esclarecidas preferem optar por um tom sem realidade e hipócrita. Quantas vezes vemos marginais assaltando inocentes nas ruas, matando, estuprando. São majoritariamente negros, não? Isso não é racismo, é constatação. Se fossem todos loiros de olhos azuis não haveria problema fazer essa constatação também. E o mesmo vale para as empregadas. A maioria é negra. Isso é racismo? Não, pelo contrário, isso é constatar como no nosso país os negros sempre estão em situações mais complicadas e precisam batalhar mais. A novela é um retrato da sociedade e exibir o diferente disso seria irreal e aí sim forçado. Portanto, o texto do Sérgio está irretocável e deixa essa questão de "temos que parar de colocar negros como empregados ou bandidos" pequena e desimportante. Tem sim que colocar negros em boas condições também, como já é feito. A própria Além do Tempo tem o Raul como fotógrafo bem sucedido, a Totalmente Demais com um advogado e outra dona de uma revista de moda... Só deverá extinguir papéis desse tipo como os citados por você quando não existir mais na nossa vida, o que ainda falta MUITO.

Ernane disse...

Excelente texto. A melhor novela que abordou isso foi Da Cor do Pecado, além de Lado a Lado.

Joana Limaverde disse...

Gostei do texto e do paralelo com as novelas. Muito bem sacado.

Vera Lúcia disse...


Excelente texto e abordagem, Sérgio!
É um absurdo estes ataques racistas na internet, mesmo porque os casos citados dizem respeito a mulheres lindas, inteligentes e bem sucedidas. O racismo é algo que parece vir de uma alma racista e/ou pouco esclarecida. É importante que o tema continue a ser explorado nas novelas, que são vistas por uma grande massa popular.
Certo é que o preconceito é um dos problemas mais graves em todo o mundo. Respeito pelo próximo, independente de qualquer eventual diferença, é fundamental para a saúde das relações humanas.

Abraço.

Unknown disse...

Sérgio, eu fico indignado com isso e não consigo acreditar que ainda existe racismo em pleno século XXI. As vezes penso que isso é coisa daqueles trollzinhos de Internet que fazem apenas pela ~zoeira~
Espero que todos sejam punidos.
Ademais, todas as novelas citadas que abordaram o racismo foram muito boas, principalmente Lado a Lado e Da Cor do Pecado.
Abraços

Sérgio Santos disse...

Muito obrigado, Kika.

Sérgio Santos disse...

F Silva, seu comentário ficou ótimo como sempre e ainda serviu de complemento ao meu texto. bjs

Sérgio Santos disse...

Anonimo, é verdade, mas a Sheron fez uma respeitada advogada em babilônia recentemente.

Sérgio Santos disse...

Obrigado, anonimo.

Sérgio Santos disse...

Valeu, Heródoto.

Sérgio Santos disse...

É triste msm, Gabriel, e gostei da lembrança do caso recente com Star Wars.

Sérgio Santos disse...

Obrigado, Pedro! Abração!

Sérgio Santos disse...

Anonimo, entendi o seu ponto de vista e é um argumento bem contundente.

Sérgio Santos disse...

Infelizmente msm, Elvira. E vc citou grandes nomes!

Sérgio Santos disse...

Exato, Ernane.

Sérgio Santos disse...

Que bom, Joana!

Sérgio Santos disse...

Mt obrigado, Vera. E isso é coisa d ignorante msm, mas que faz pq sabe que não dará punição grave, infelizmente.

Sérgio Santos disse...

É assustador e desanimador ao mesmo tempo, Ed. Abraços!