Através de Eurico, conservadorismo foi explorado de forma criativa em "A Força do Querer"

A um dia do seu fim,  "A Força do Querer deixará saudades. E um dos muitos pontos positivos da novela de Glória Perez foi a figura de Eurico. A autora se mostrou muito criativa na abordagem do preconceito, machismo e conservadorismo, evitando o tradicional maniqueísmo e expondo a ignorância de uma pessoa íntegra. Humberto Martins se destacou cada vez mais na história e a cena mais aguardada foi ao ar somente no penúltimo capítulo: a descoberta da vida dupla de Nonato (Silvero Pereira).

Após meses achando que seu motorista era um conquistador nato e típico machão, Eurico o viu se apresentando como Elis Miranda em um desfile de moda e entrou em estado de choque. Antes de se dar conta que era Nonato no palco, o empresário chegou a elogiar o talento da artista. Esse momento era um dos mais esperados da trama e é uma pena que Glória tenha deixado apenas para o final, deixando de aproveitar todo o período de entendimento e aceitação daquele homem tão machista.

Afinal, o personagem representou uma união de preconceitos. Nunca entendeu a homossexualidade e sempre recriminou o cabelo longo de Nonato, achando coisa de 'maricas'. Achou um absurdo Ivana (Carol Duarte) ter se descoberto trans, virando Ivan, e nunca tolerou mulher mandando mais que homem. O lado criativo dessa situação foi o fato de Eurico não ser um canalha. Pelo contrário, ele é um homem justo, honesto, atencioso com a esposa e fiel.
A autora acertou em cheio ao mostrar que nem todo preconceituoso é um sujeito sem caráter e sem salvação. Até porque há vários Euricos na família de cada telespectador.

A forma bem-humorada que tratou a condução do personagem também merece elogios, pois Humberto protagonizou vários momentos impagáveis ao longo da novela e muitos de humor involuntário. Eurico sempre se achou o homem mais esperto do mundo, mas no fundo era o mais burro. Enganado o tempo todo pela esposa, Silvana (Lília Cabral), viciada em jogo, e pelo motorista, uma travesti que bancava o hétero na frente do patrão. A própria maneira de expor seus preconceitos era engraçada, pois ficava evidente que ele não falava na maldade. Era mesmo ignorância. E há bastante gente assim.

Não por acaso o perfil virou um dos mais queridos da novela, crescendo cada vez mais e destacando o talento do ator. Sua parceria com Lília Cabral e Juliana Paiva foi maravilhosa, assim como a dobradinha ao lado de Silvero, uma das gratas revelações da trama. E, através dessa pessoa, Glória mostrou que o preconceito pode ser revertido, principalmente vindo de alguém que transborda princípios. Até mesmo um sujeito estudado pode ser ignorante e conservador. Isso, entretanto, não implica em falha de caráter. Há gente cruel demais nesse mundo, mas há também apenas quem precisa de tempo para compreender e aceitar. Pena que tenha demorado tanto para exibir a cena do flagra, pois teria rendido outras grandes sequências antes do final.

Eurico se choca e rejeita Nonato, mas depois, claro, entende e aceita o motorista como ele é, resolvendo até patrocinar os shows de Elis Miranda. "A Força do Querer" se mostrou um folhetim de muitos acertos e um deles foi justamente essa abordagem da intolerância, mesclando bom humor com situações mais pesadas (envolvendo as agressões sofridas pelo travesti nas ruas, por exemplo), usando a figura de Eurico para deixar claro que o preconceito pode vir também de pessoas de boa índole. Humberto Martins esteve ótimo.