sexta-feira, 30 de junho de 2023

Os avanços e os retrocessos dos romances homoafetivos na teledramaturgia

 Nesta quarta-feira, dia 28, foi comemorado o dia do Orgulho LGBTQIAPN+. A censura da cúpula da Globo a vários beijos de Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman) em "Vai na Fé" gerou uma imensa repercussão negativa na redes sociais e em todos os sites especializados em entretenimento. Afinal, a maioria pensava que a discussão em torno da exibição ou não de um gesto de amor já tinha sido superada pela emissora. Até pelas próprias campanhas que o canal faz em sua programação e nos vários eventos que promove. Após a avalanche de críticas, o beijo foi finalmente ao ar recentemente. Mas o fato serviu para desnudar a hipocrisia do discurso de muitas empresas. 


A verdade é que a discussão em torno da pluralidade e do combate ao preconceito, muitas vezes, só é levantado para gerar dinheiro em cima de pautas que vários empresários, na verdade, estão pouco se lixando. É importante ressaltar que a Globo é o único canal que levanta os temas e os valoriza, já que Record, SBT e Band simplesmente ignoram o avanço da sociedade e fica perceptível em suas novelas ou nos setores de jornalismo. Mas a cúpula da emissora acaba se igualando aos concorrentes quando ainda demonstra preocupação com o público conservador, que engloba os intolerantes, retrógrados e de extrema direita. 

É claro que a preocupação com a reação do público é válida, pois se trata de uma programação que chega a milhões de pessoas, onde a diversidade de pensamentos é incontestável. A divisão acirrada da eleição presidencial de 2022 deixou evidente o quão o país está longe de uma unanimidade. Porém, a ideia de uma sociedade sem ódio ao diferente e que prevalece o respeito a todos, infelizmente, sempre será uma utopia.

Os preconceituosos jamais deixarão de existir. E por isso mesmo é preciso acabar de vez com o temor inútil de desagradar gente que não merece ser agradada com nada. Até quando emissoras ou empresas vão se preocupar em não ter rejeição de uma parcela da população que nutre horror ou até mata a outra parte? Por que a Globo está com medo de reações negativas de pessoas que não querem assistir a duas mulheres ou a dois homens se beijando em uma novela? As mesmas novelas que apresentam traições, assassinatos, cenas de sexo, é importante ressaltar. 

Houve uma grande espera e muitos obstáculos para que momentos de amor entre pessoas do mesmo sexo fossem exibidos em uma novela ou série na televisão. O preconceito sempre vencia. Nos anos 80 e 90, tudo era apenas sugerido e nunca tinha grande destaque nas histórias, vide Cecília (Lala Deheinzelin) e Laís (Cristina Prochaska), em "Vale Tudo" (1988); o casal formado por Sandrinho (André Gonçalves) e Jefferson (Lui Mendes) em "A Próxima Vítima", de 1995; e a relação extraconjugal que Rafael (Odilon Wagner) teve com Alex (Beto Nasci), em "Por Amor" (1997). Já em 1998, Silvio de Abreu resolveu dar ênfase ao amor de Rafaela (Christiane Torloni) e Leila (Silvia Pfeifer), em "Torre de Babel". Mas mesmo sem ter qualquer cena de beijo, o casal foi fortemente rejeitado, o que fez o autor matar ambas na explosão do shopping que marcou a virada do enredo. 


Manoel Carlos abordou com delicadeza o amor de Clara (Alinne Moraes) e Rafaela (Paula Picarelli) em "Mulheres Apaixonadas", de 2003, atualmente reprisada no "Vale a Pena Ver de Novo", e a relação foi muito bem construída ao longo da novela de imenso sucesso. Não houve rejeição. Mas nada de beijo. Era tudo subliminar. Ainda assim, aconteceu até certa 'evolução' com uma cena de banho que as namoradas tomaram juntas. Houve muito especulação na época sobre a possibilidade de um beijo no último capítulo. E o beijo foi exibido. Mas era um selinho muito rápido e durante uma apresentação de Romeu e Julieta, onde Rafaela estava representando Romeu. Ali ficou evidente o malabarismo feito para evitar ao máximo qualquer rejeição ou críticas da parte conservadora do público. 


Em 2004, no fenômeno "Senhora do Destino", Aguinaldo Silva abordou muito bem a relação entre Leonora (Bárbara Borges) e Jenifer (Mylla Christie). As duas chegaram a protagonizar uma cena em que acabavam de acordar nuas na cama, dando a impressão de uma pós-transa. As personagens também trocaram um selinho ao longo da trama. Um passo a mais em relação ao casal de "Mulheres Apaixonadas". Em 2005, foi a vez de Glória Perez apresentar um casal gay em "América". Júnior |(Bruno Gagliasso) e o peão Zeca (Erom Cordeiro) se apaixonaram e no último capítulo a autora escreveu um beijo para os dois. Os atores gravaram e a expectativa para o momento era muito alta, afinal, beijo entre homens ainda era algo inédito na televisão aberta. Mas na hora agá a Globo cortou a cena, o que gerou várias críticas, que incluíram a dos intérpretes e a da escritora. Um retrocesso, após uma lenta evolução de folhetins anteriores. 


O efeito da censura da Globo foi devastador no setor de teledramaturgia. Tanto que em 2007, dois anos depois, Gilberto Braga e Ricardo Linhares criaram o casal Tiago (Sérgio Abreu) e Rodrigo (Carlos Casagrande) em "Paraíso Tropical". Os dois tinham uma relação estável, moravam juntos e tinham uma vida de classe média alta. Mas a rotina da dupla era de melhores amigos ou irmãos. Eram raros os momentos de maior afeto. No mesmo ano, em "Duas Caras", de Aguinaldo Silva, o par foi formado por Bernadinho (Thiago Mendonça) e Carlão (Lugi Palhares), mas sem beijo e com direito a trisal com Dália (Leona Cavalli). Em 2010, no remake de "Ti Ti Ti", Maria Adelaide Amaral e Vincent Villari criaram um lindo casal formado por Julinho (André Arteche) e Thales (Armando Babaioff), após o longo luto de Julinho pela perda de Osmar (Gustavo Leão), seu namorado que morreu em um acidente de carro. Porém, não houve beijo do personagem com um e nem outro. Já em 2011, a relação entre Eduardo (Rodrigo Andrade) e Hugo (Marcos Damigo), em "Insensato Coração", também não tinha cenas de maior afeto. Ou seja, tudo foi caminhando a passos muito lentos. Ano após ano e com direito a retrocessos pelo caminho. 


Em 2013, o beijo que Félix (Mateus Solano) e Niko (Thiago Fragoso) deram no último capítulo de "Amor à Vida" gerou comoção nacional e a própria audiência exigia o beijo do casal. A cena entrou para a história da teledramaturgia porque foi a primeira que apresentou um beijo entre dois homens na televisão aberta. O SBT já tinha apresentado o primeiro beijo entre mulheres em 2011, na novela "Amor e Revolução", através de Marcela (Luciana Vendramini) e Marina (Gisele Tigre), e durou 40 segundos. Ao contrário da produção da líder, não foi um selinho. Até hoje é a única novela que apresentou um beijo demorado entre pessoas do mesmo sexo. Mas depois o SBT migrou para o seguimento infantil e nunca mais teve um par gay em seus folhetins. Já em 2014, na trama "Em Família", Clara (Giovanna Antonelli) e Marina (Tainá Muller) deram um selinho no dia em que uma pediu a outra em casamento. Naquela época, ao menos havia a esperança de que tudo estava mudando na teledramaturgia depois do que aconteceu na produção de Walcyr Carrasco. 


Tanto que em "Babilônia", de 2015, houve uma mudança na narrativa. Ao invés de exibir o beijo no último capítulo, Gilberto Braga, Ricardo Linhares e João Ximenes Braga resolveram colocar o gesto de amor logo no primeiro capítulo e com um casal que estava junto há muitos anos. No entanto, o beijo de Estela (Nathalia Timberg) e Teresa (Fernanda Montenegro) provocou rejeição do público, que transbordou dois tipos de preconceito: a homofobia e o etarismo. Os autores alegam até hoje que foi o motivo do imenso fracasso da novela, o que não é verdade. A história era ruim e nada convidativa. O beijo só expôs o conservadorismo de parte da audiência. Mas, apesar da polêmica, a Globo não parecia mais disposta a retroceder.


A prova foi em "Liberdade, Liberdade", novela das 23h exibida em 2016, escrita por Mário Teixeira. O romance de Tolentino (Ricardo Pereira) e André (Caio Blat) teve direito até a uma cena de sexo protagonizada pelos personagens por conta do horário mais tardio. A expectativa de mudança estava tão em alta que em 2017, em "Malhação - Viva a Diferença", temporada de sucesso de Cao Hamburger, cenas de beijo entre Lica (Manoela Aliperti) e Samantha (Giovana Grigio) foram ao ar sem qualquer polêmica. Isso em uma produção que era exibida a partir das 17h45. E a evolução em torno do tema na teledramaturgia se solidificou em 2018, com "Orgulho e Paixão", novela das 18h de Marcos Berstein, através do casal Luccino (Juliano Laham) e Otávio (Pedro Henrique Muller). Os personagens se beijaram em uma das cenas mais lindas da trama e às seis da tarde. A trama abriu as portas para que as sucessoras na faixa também seguissem o mesmo caminho, vide "Órfãos da Terra", em 2019, com o casal formado por Camila (Anaju Dorigon) e Valéria (Bia Arantes). Até na pior temporada de "Malhação", com o subtítulo de "Vidas Brasileiras", houve um beijo entre Michael e Santiago, personagens interpretados por Pedro Vinicius e Giovanni Dopico. 


No ano de 2017, Glória Perez viveu o melhor momento de sua carreira como novelista com o imenso sucesso "A Força do Querer" e um dos êxitos da história foi a saga de Ivana (Carol Duarte), que se descobriu trans e mudou seu nome para Ivan em um processo de transição que emocionou o público. Hoje em dia haveria uma forte crítica por conta da escalação de uma atriz cis para viver um personagem trans, mas na época a discussão sobre a representatividade ainda não era tão forte. E a abordagem foi delicada e bastante didática envolvendo um paralelo com Nonato (Silvero Pereira), motorista que se transformava em Elis Miranda durante seus shows. Por sinal, o ator declarou ano passado que agora, com a nova visão que tem, não aceitaria o papel justamente por conta da questão da representatividade. E voltando ao Ivan, o personagem só beijou Cláudio (Gabriel Stauffer) depois da transição no último capítulo. 


Mas em 2019, com "Bom Sucesso" , fenômeno das sete escrito por Rosane Svartman e Paulo Halm, a Globo já dava sinais bem discretos de retrocesso. Como a censura foi feita de forma muito subliminar, poucos perceberam. Havia uma trama promissora envolvendo Michelly (Gabrielle Joie), uma das alunas da escola. A personagem, trans assim como sua intérprete, lutava pelo direito de usar o banheiro feminino, mas enfrentava o preconceito. Ainda ficou sugerido um interesse por um professor, uma questão polêmica que resultaria em bons conflitos. Mas a potência vista no início da história foi sendo apagada aos poucos até a menina praticamente sumir do enredo. O sumiço não foi decisão dos autores e ficou claro. Outro ponto que ficou visível foi a relação entre Pablo (Rafael Infante) e William (Diego Montez). O casal tinha ótima aceitação e protagonizou um beijo (um breve selinho) em uma cena rotineira, onde um se despedia do outro para trabalhar. O momento foi elogiado por toda a crítica. Todavia, depois não houve mais beijo algum. Somente no último capítulo, como de praxe. E sei por fonte segura que isso foi ordem da cúpula da emissora. Mas na época não teve repercussão por ter sido algo sutil e que não vazou para a imprensa.


Em 2020, a pandemia paralisou todas as gravações e as novelas que estavam no ar foram interrompidas. Só retomaram com cenas repletas de protocolos sanitários. Mas mesmo assim, em "Amor de Mãe", houve um beijo no último capítulo entre as personagens Penha (Clarissa Pinheiro) e Leila (Arieta Côrrea). Até na problemática "Nos Tempos do Imperador", em plena reta final, várias cenas românticas de Vitória (Maria Clara Gueiros) e Clemência (Dani Barros) foram exibidas. As duas se beijaram mais de uma vez e não somente no fim, algo que merece ser lembrado já que infelizmente não é comum. Vale mencionar a ótima novela de Lícia Manzo, "Um Lugar ao Sol", de 2022, que apresentou o lindo casal formado por Ilana (Mariana Lima) e Gabriela (Natália Lage). A autora construiu muito bem a relação e as personagens protagonizaram um beijo de verdade, nada de selinho. É preciso até citar a amizade de Ilana com Rebeca (Andrea Beltrão), que tinha vários selinhos em muitas cenas. Algo que não provocou nenhuma rejeição. Em 2023, apenas um ano depois, parece até muito inovador diante do que tem sido apresentado atualmente com a novo comando de Amauri Soares no setor de teledramaturgia da Globo. 


Aliás, ainda é preciso lembrar o que ocorreu em "Além da Ilusão", novela de sucesso das seis exibida ano passado. Alessandra Poggi criou o casal Plínio (Nikolas Antunes) e Leopoldo (Michel Bols). No entanto, o romance foi construído às pressas e a dupla logo saiu da história. A autora ainda colocou no texto de uma cena que não haveria beijo por conta do horário. Foram muitas críticas nas redes sociais a ponto do par voltar apenas no último capítulo para um beijo final. Já no remake de "Pantanal", exibido também em 2022, Zaquieu (Silvero Pereira) não tinha qualquer relação homoafetiva, assim como ocorreu na versão original de 1990, já que Bruno Luperi apenas copiou e colou o texto do avô Benedito Ruy Barbosa. Porém, no último capítulo, o personagem terminou feliz ao lado do peão Zoinho (Thommy Shiaco), com direito a um beijo. 


"Vai na Fé" está a um mês e uma semana do seu desfecho. Resta aguardar para ver se Clara e Helena voltarão a se beijar até lá ou se ficará por isso mesmo, o que será lamentável. Ainda tem a volta de Vini (Guthierry Sotero) e a possibilidade de ficar com Yuri (Jean Paulo Campos), protagonizando um beijo melhor do que o selinho da última cena do casal e que só foi ao ar depois de vários cortes e muitos protestos. Em "Amor Perfeito", folhetim das 18h que chega ao fim em setembro, a homossexualidade de Érico (Carmo Dalla Vechia), que passou a se relacionar com Verônica (Ana Cecília Costa), foi apagada --- sua relação com o ex foi exposta de forma rasa. Já "Terra e Paixão", atual trama de Walcyr Carrasco, só termina em janeiro de 2024 e o autor criou dois casais que caíram imediatamente no gosto do público: Kelvin (Diego Martins) e Ramiro (Amaury Lorenzo), e Menah (Camilla Damião) e Mara (Renata Gaspar). Resta torcer para que o maior coringa da Globo não seja censurado ao longo do percurso e que os romances homoafetivos deixem de ser retalhados na única emissora que se dispõe a apoiar a diversidade. 

8 comentários:

Anônimo disse...

Sérgio, você fez um excelente balanço sobre os romances homoafetivos dos folhetins brasileiros, explicitando muito bem o conflito vivido por executivos das principais emissoras abertas de televisão em tratar ou não esse tema como tabu para alcançar a simpatia de uma parcela "conservadora" dos telespectadores (um evidente eufemismo para "preconceituosa").

Guilherme

Anônimo disse...

Eu gosto muito de "senhora do destino" no Viva, e realmente é difícil ver como estamos caindo nestes tópicos. No mesmo dia do início do mês do orgulho as duas lésbicas (Jenifer e Leo) tiveram um beijo acidental na boca e no mesmo dia a Globo censurou o beijo lésbico em "Vai na Fé"

Marly disse...

Pois é, não é de hoje que este tema tem sido ignorado e mesmo propositalmente encoberto, enquanto os preconceitos e as maldades contra os gays correm soltos pelo mundo. Penso que já passa da hora de a humanidade aceitar as pessoas como elas são.

Beijão

Jovem Jornalista disse...

Muito legal o post. "Orgulho além da tela" retratou tudo isso que você falou.

Boa semana!

O JOVEM JORNALISTA está no ar com muitos posts e novidades! Não deixe de conferir!

Jovem Jornalista
Instagram

Até mais, Emerson Garcia

Sérgio Santos disse...

Mt obrigado, Guilherme.

Sérgio Santos disse...

Eu tb gosto mt, anonimo.

Sérgio Santos disse...

Concordo, Marly!

Sérgio Santos disse...

Verdade, Emerson.