quinta-feira, 13 de junho de 2024

A crise na teledramaturgia da Globo é uma realidade

 A crise da teledramaturgia nunca esteve tão evidente. Não por conta do esgotamento do gênero, como muitos insistem em afirmar, mas, sim, pela gestão acomodada e equivocada das empresas. Record e SBT nem merecem entrar no debate porque deixaram de ser competitivas há anos e se apequenaram com as novelas infantis e bíblicas, respectivamente, que não fazem mais sucesso e servem apenas para pagar contas. A Globo ao menos se diferenciava por ser a maior produtora de folhetins no Brasil e no mundo. Mas está a cada dia mais claro o quanto a líder vem se afundando em decisões que beiram o amadorismo. 


É importante ressaltar: a Globo teve o maior lucro em 8 anos e a receita líquida do primeiro trimestre atingiu R$ 3,7 bilhões, alta de 12% em comparação ao mesmo período do ano anterior. O Ebitda (lucros antes de juros, impostos, depreciação e amortização) da companhia fechou o trimestre positivo em R$ 812 milhões. Portanto, a empresa vai muito bem, obrigado. Só que a forma como a cúpula do canal vem tratando o setor de teledramaturgia, que sempre foi um dos maiores trunfos da emissora, transparece um descaso inexplicável e que é observado pelo público que acompanha suas produções há muitos anos. 

O corte de custos é sentido na contratação dos elencos diante da não renovação de contrato de diversos nomes de peso, que acabam recusando posteriormente o chamado trabalho 'por obra'. Cadê os veteranos? Não há mais nomes acima dos 70 anos em praticamente produção nenhuma. Uma mistura de etarismo com 'pão-durismo'. E a redução das despesas também é visível na falta de qualidade de muitas cenas. Algo que era impensável na Globo.

E nada tem a ver com os atores, pelo menos não na maioria das vezes. É perceptível a quase extinção de gravações em externas, o que era algo corriqueiro nas novelas. Agora, a maioria das cenas são feitas em estúdio e até momentos de ação acabam realizados nas vielas dos Estúdios Globo, o que deixa o resultado artificial e sem impacto. 

Recentemente, durante a reprise de "Paraíso Tropical" no "Vale a Pena Ver de Novo", impressionou a quantidade de sequências feitas em ruas importantes do Rio de Janeiro, o que deixava tudo bem mais verossímil. É importante ressaltar que o Projac foi criado em 1995 justamente com o objetivo de facilitar as gravações e dinamizar os trabalhos, o que se tornou um divisor de águas na empresa. É uma fábrica de sonhos, como muitos o classificam. Mas a construção majestosa da Globo nunca foi um impeditivo para cenas feitas em outros locais. Havia um equilíbrio e a reexibição da trama de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, produzida em 2007, é uma das provas. As próprias novelas de Manoel Carlos tinham vários momentos gravados em pleno Leblon. Claro que os custos são mais altos, mas o resultado é infinitamente melhor. 


As cenas realizadas fora do Estúdios Globo viraram raridade atualmente. Até mesmo nas produções do horário nobre, como o remake de "Renascer", que é ambientado na Bahia, mas é impossível perceber. A trama adaptada por Bruno Luperi parece realizada em qualquer lugar do Brasil porque quase todas as sequências são feitas na fazenda da cidade cenográfica e dentro dos estúdios. Não há diferencial algum. Até vazou em vários sites que a emissora cancelou a viagem de parte dos atores para Ilhéus porque resultaria em um custo elevado. E se os cortes são percebidos na produção das nove, a redução da qualidade nas tramas das seis e das sete é escancarada. O caso de "Família é Tudo" é o mais evidente. As cenas são todas nas pequenas ruas da cidade cenográfica e os cenários dos estúdios são tão limitados que muitas vezes parece que os personagens nunca saem do lugar. O vilão Hans (Raphael Logam) aparenta estar preso em seu escritório, por exemplo. Já no caso de "No Rancho Fundo", a direção competente de Allan Fiterman consegue disfarçar melhor os problemas, embora não consiga o tempo todo. Na produção das seis anterior, o fracasso "Elas por Elas", a pobreza dos cenários era bem mais escandalosa. 


José Luiz Villamarim entrou no lugar de Silvio de Abreu na gestão de teledramaturgia do canal em 2020. Desde então, houve uma mudança brusca no planejamento das produções. O autor anterior, apesar das críticas sobre suas interferências nos trabalhos dos novelistas, conseguia manter uma fila de folhetins com até dois anos de antecedência. Havia uma certa organização. Com o substituto não há mais planejamento algum. Vale lembrar que não dá mais para confiar nem mesmo no anúncio oficial das produções em eventos de divulgação, vide o cancelamento de "Conta Comigo", novela das sete de Mauro Wilson, prevista para o segundo semestre e arquivada de forma abrupta. Para culminar, no final de junho do ano passado, Amauri Soares assumiu o lugar de Ricardo Waddington como diretor dos Estúdios Globo. A emissora vem passando por reestruturações desde o início de 2023 e várias mudanças vêm sendo observadas no setor de teledramaturgia da empresa. Além do corte de custos, as alterações significativas na aprovação de sinopses e maior conservadorismo foram observados. Não dá para esquecer as polêmicas envolvendo os casais homoafetivos de "Amor Perfeito", "Vai na Fé" e "Terra e Paixão", onde a censura em algumas cenas de beijos e até no desenvolvimento das histórias ficaram evidenciadas a ponto de repercutir negativamente na imprensa. Não por acaso, as três tramas atuais ("No Rancho Fundo", "Família é Tudo" e "Renascer") não apresentam um casal gay sequer. 


Vale lembrar também a notícia que proliferou em vários sites sobre a orientação para que os autores evitassem escrever tramas espíritas por causa da 'multireligiosidade' do brasileiro. Elizabeth Jhin, autora conhecida por suas obras espíritas, deixou a Globo quase dois anos depois do término da primorosa "Espelho da Vida", em 2019, e declarou que não pretende mais fazer novelas e muito menos para a Globo. Até Thelma Guedes preparava uma trama espírita para a emissora e precisou cancelar. O irônico é que a reprise de "Alma Gêmea", fenômeno de Walcyr Carrasco em 2005, vem quebrando recordes de audiência no "Vale a Pena Ver de Novo", chegando a picos de até 21 pontos. E a trama só voltou ao ar para reerguer o índices da faixa, que estavam de mal a pior. Isso porque há alguns anos foi estabelecido pela própria cúpula da empresa que só reprisariam folhetins das nove no final da tarde. A regra foi quebrada porque já não havia opção viável para colocar no ar. 


O público está dando a resposta para a Globo através do sucesso de "Alma Gêmea", mas Amauri e José Luiz Villamarim parecem não ouvir. Tanto que a aposta segue em remakes, mesmo diante do fracasso de "Elas por Elas" e "Renascer". Em entrevista recente ao jornalista Gabriel Vaquer, do site F5, Villamarim negou qualquer crise na teledramaturgia e fez questão de elogiar os remakes, deixando claro que a releitura de "Vale Tudo" é a produção escolhida para celebrar os 60 anos da emissora em 2025. A confirmação não surpreendeu ninguém, mas vão comemorar com a adaptação de um produto considerado impecável? Vale o risco? E agora ainda criaram uma nova modalidade: a continuação de novelas. Vale lembrar que a sinopse de Lícia Manzo para as 18h, que já estava aprovada e em processo de escalação, foi cancelada e classificada como elitista. A autora contaria a história de uma violinista que viria ao Brasil em busca de suas origens e montaria uma orquestra em uma favela. Mário Teixeira foi chamado às pressas para criar a continuação de "Mar do Sertão", que ganhou o título de "No Rancho Fundo". E como vem elevando os índices das 18h, também ajudado pelo êxito da reprise de "Alma Gêmea", Amauri encomendou para Walcyr uma sinopse de "Êta Mundo Bom! 2" para que Mauro Wilson (responsável por "Quanto Mais Vida, Melhor!") desenvolva. São autores de estilos diametralmente opostos. Qual o sentido? Não seria muito melhor pedir para o veterano escrever uma trama espírita nova para a faixa das seis? Ou então convocar Lícia para criar uma obra de época? Ou chamar Marcos Berstein, responsável pela deliciosa "Orgulho e Paixão" (2018), de volta? Ou recontratar Paulo Halm, que foi parceiro de Rosane em "Malhação Sonhos", "Totalmente Demais" e "Bom Sucesso"?


O pior é que as decisões controversas não param. Com o cancelamento da obra de Mauro Wilson, Cláudia Souto foi chamada às pressas para escrever a próxima novela das sete. A autora do fiasco "Cara e Coragem" agora criou um enredo sobre uma empresa de ônibus que será pano de fundo para vários personagens batalhadores. Mas a emissora deu o título de "Volta por Cima". A falta de criatividade para os nomes dos folhetins tem impressionado. São escolhidas denominações genéricas que serviriam para qualquer obra e não geram identificação com o público. A próxima produção das seis, escrita por Alessandra Poggi, tinha o título provisório de "Tuti-Frutti", o que já não era lá aquelas coisas. Mas mudaram para "Garota do Momento", uma denominação ainda pior. Os dois novos títulos que preencherão a grade no segundo semestre se mostram tão aleatórios quanto "Família é Tudo". Até mesmo o título "Mania de Você", referente ao folhetim das nove de João Emanuel Carneiro que estreia em setembro, é controverso. 


A verdade é que há muitas novas histórias para serem contadas e autores talentosos prontos para uma oportunidade. A teledramaturgia nacional é prestigiada pelo mundo todo e não está saturada. É desesperador ver a empresa responsável por esse prestígio tão perdida a ponto da novela de maior sucesso atual ser uma reprise de quase 20 anos atrás. É um momento que exige sérias reflexões. 

20 comentários:

Pedrita disse...

há muito preconceito e receio em investir em novos autores. justiça 2 bateu em ibope as novelas na tv aberta. mostrando que o público tem interesse em tramas não tão óbvias e atuais. mas o conservadorismo, a tentativa de atrair um público mais conservador, tem feito uma cegueira que aparece no desinteresse pelas tramas. eu não estou vendo nenhuma novela atualmente na tv globo. amava elas por elas e foi a ótima. espero q surja alguma interessante. beijos, pedrita

Andie disse...

https://www.ranablewebs.com/2024/06/entrelacados-capitulo-14.html?m=1

Pamela Sensato disse...

Péssimos atores, e tudo muito forçado. Faz anos que não assisto uma novela se quer, e também com séries a rodo a tv aberta passou ser opção apenas para o esporte.

Beijos da Pâm!!
Blog Resenhas e Afins

Fá menor disse...

Sempre de olho em todos os detalhes, parabéns pelos relatos detalhados.

Bom fim-de-semana!

Anônimo disse...

E pior, escrevendo novelas com chatgpt... Só isso explica o texto de Família é tudo! Tudo muito inverossímil, sem alma... Péssimo, péssimo, péssimo.

Ana Paula S. F. Pessoa disse...

Triste! Já não podemos mais falar "padrão Globo de qualidade" na teledramaturgia da mesma, já que vem em queda ano após ano com esses corte$$$. Falando em produções espíritas também perderam a chance de reprisar "A Viagem" que creio também seria novamente sucesso na Globo. Tô revendo no Viva e amando. Já deu desses remakes. Enquanto isso autores de qualidade sendo dispensados ou engavetados. Aquela Fuzuê tentei ao máximo acompanhar, mas desisti. Essa Família é Tudo tô só pelo núcleo dos doguinhos kkkkkkkk. Já Renascer tô pelo elenco e algumas cenas que sei são boasde rever por já ter assistido a primeira versão. E Rancho Fundo também tem um elenco maravilhoso e a Andrea Beltrão tá brilhando com a Zefa. Eu não tinha botado fé, mas diva faz assim. Tá perfeita e guerreando com a Débora Bloch, sem contar Mariana Lima, Alexandre Nero, Du Moscovis e os demais do elenco. Enfim, entre erros e acertos, das que estão no ar é a que eu gosto de acompanhar.

Marly disse...

Eu acho que o que está acontecendo é resultado de uma correlação de fatores. A revolução tecnológica, o aparecimento das plataformas de streamings, a demissão de artistas e a pressão sobre outros, a ansiedade em mostrar o que é 'novo' e 'tendência', e, possivelmente, a ausência de novos talentos, no campo da produção (leia-se: autores do texto, diretores, etc.).
Particularmente não sou contra novelas de cunho religioso. Acho que o respeito à pluralidade religiosa é resolvido dando visibilidade a todas as religiões.

Beijo e bom fim de semana

Anônimo disse...

Exatamente! É muito triste o que vem acontecendo, eu amo novelas, mas acabo ficando só com as reprises.

Priscilla Alves disse...

Isso que dá olhar só para planilhas e esquecer do fator humano. O público do sofá já migrou para as novelas turcas que estão crescendo no streaming (a própria Globo investe nisso). Não conseguem cativar o público jovem desde que acabaram com Malhação, não tem um conteúdo juvenil pra fazer a trilha de engajamento. Ou seja, as gerações crescem e não tem a Globo mais como referência. Olham o número de hoje, dados e resultados pra hoje. Eles têm que pensar em longo prazo, pensar diversidade não é só abraçar causas, mas temas e idades também. Eu vejo a Globo perdida. Existem ideias boas e bons profissionais dispostos mas os cabeças de lá não arriscam. E quem não arrisca não inova. Estão presos no remake, no sucesso de outrora e esquecem que o público evoluiu. O que querem de antigamente é formato: externas, improvisos, figurino, bons enredos. Não a mesma história contada de forma pior.

Anônimo disse...

Embora ainda haja na Globo um ou outro folhetim ao ano com histórias repletas de potencial, é nítido que o esmero nos processos do planejamento do setor de teledramaturgia da empresa vem sendo posto de lado, e por conseguinte deixando uma parcela do público descontente com as decisões tomadas nos últimos anos pelos executivos da emissora.

Guilherme

Citu disse...

Da mucha pena. Te mando un beso.

FABIOTV disse...

Olá, tudo bem? Família É Tudo mais parece uma novela carioca que paulista. Renascer está longe de ser uma trama ambientada no sul da Bahia. Isso é responsabilidade da direção das duas novelas. E já adianto que o remake de Vale Tudo trilha o caminho do fracasso. Abs, fabio www.blogfabiotv.blogspot.com.br

Chaconerrilla disse...

Comecei "Família é tudo" com a esperança do vazio deixado por "Além da ilusão" (que foi a última novela que realmente assisti; tentei "vai na fé", mas cansei e abandonei), mas lá pelo capítulo 80 eu já não aguentava mais. São cenas repetidas, enredo que não evolui, personagens que não evolui, vilões sem carisma, etc. Tudo que eu precisava agora era uma novela da Elizabeth Jhin! Tenho visto a reta final de "Espelho da vida" em looping. Também amo rever "Além do tempo". Essas sim eram novelas realmente boas!

RÔ - MEU DIÁRIO disse...

Você sabe como abordar um assunto, hein! Só sei que minha mãe reclama muito da falta que ela sente dos artistas experientes, como ela costuma dizer. Bju

Anônimo disse...

Tenho medo de um remake de Vale tudo. Essa novela é "perfeita" demais pra correr o risco de ser estragada. Renascer sempre foi superestimada. Rei do Gado e Terra nostra são melhores do que ela. Renascer nunca mereceu um remake.

Jovem Jornalista disse...

Adorei sua reflexão. Não se fazem mais boas novelas como antigamente. Uma pena que vários autores consagrados da Globo saíram do canal.

Boa semana!

O JOVEM JORNALISTA está no ar cheio de posts novos e novidades! Não deixe de conferir!

Jovem Jornalista
Instagram

Até mais, Emerson Garcia

Reflexos Espelhando Espalhando Amig disse...

Sergio!
Prezo e admiro o trabalho
da Rede Globo por todo esse
tempo que ela brilha.
Mas tenho perdido a paciência
por falta dos talentos consagrados e
experientes que tem sido dispensados.
O problema é que os novos talentos
ainda vão levar um tempo para serem
moldados e adquirirem a chamada
experiência. Estou reassistindo
Guerra]dos Sexos, mas a 1a edição.
Sua matéria é completa.
Obrigada de verdade.
Bjins
CatiahoAlc.

Ane disse...

Quando lembro do auge da Rede Globo e agora está assim em decadência. Chega a ser triste mesmo. Outra coisa é eles se envolverem com política, tomar partido de determinado candidato a presidente, por exemplo. Hoje muita gente odeia a Globo por causa disso. Beijos!

Anônimo disse...

No personal acho situação traumática, o Brasil sempre foi o campeão na novela a gente sempre configuro o maior mercado da América Latina, nosso realismo e afronta narrative foi oposto a o jeitinho mexicano e ganhamos destaque, respeito e até imitadores de nossos irmãos/vecinos. Agora a Globo tá na crises e o pior que isso aqui no existe no Brasil quem haga frente o quem consiga suplantarla. Lastimosamente a Record é uma rede para doutrinar fiéis de uma espécie de Papa evangélico, e com filha de Silvio Santos a SBT vai pelo mesmo caminho. Confesso que desde Pantanal (a metade para falar verdade) tô igual a aqueles bolsonaristas que falam não assisto a Globo, a coisa está cada vez mais chata com esas novelas que não são novelas. Porque não e só uma questão da direção e um problema dos diretores e autores que parece que como falo Aguinaldo uma vez "os autores ficaram com vergonha de fazer novela e começaram a fazer anti-novelas" numa distância nossa relação com os seriados americanos nos foi fazendo ficar mais longe de nossas raices do gênero, só lembro o outro lado do paraíso que por mais que me jurem tinha uma direção muito longe do que o texto pedia cada vez tudo era maís cinema com cara de vergonha ao melodrama. Olha como amor de mãe comendo com uma cara de o cinema novo latino e aos poucos cuando a trama de Lurdes gano espaço o público voltou. Na sequência chegou um lugar ao sol uma trama que por pretendes inovação, jogou longe a catarses e olho o anticlímax e depois chegou uma ficção científica com Travessia e aqui um problema, são três inovações seguidas, Roque Santeiro deu certo porque foi uma novidade num mar de clichês agora todo mundo quer ser o novo Edison.
Daniel

Teresa Isabel Silva disse...

Ora ai está uma boa reflexão sobre as alterações que os novos estilos de vida atraem!

xxx