Os autores George Moura e Sérgio Goldenberg formam uma dupla grandiosa e corajosa. São escritores que valorizam a arte da escrita e o bom melodrama, o que pode ser constatado em "Guerreiros do Sol", atual novela do Globoplay, que estava totalmente gravada desde 2023 e só estreou no dia 11 de junho deste ano na plataforma de streaming da Globo. Já foram disponibilizados os 45 capítulos e todos irretocáveis (há spoiler na crítica a seguir).
A trama bebe da fonte da saga de Lampião e Maria Bonita, entre 1920 e 1930, mas com novos nomes dados aos protagonistas: Josué (Thomás Aquino) e Rosa (Isadora Cruz). O enredo principal é livremente inspirado no livro "Guerreiros do Sol: Violência e Banditismo no Nordeste do Brasil", do historiador Frederico Pernambucano de Mello, publicado em 1985. E há uma visível liberdade poética na trama, o que proporciona novos arcos que valorizam as figuras femininas, ao mesmo tempo que não resulta em um produto anacrônico, como costuma ocorrer em tantos folhetins de época da Globo. Aliás, é um acerto colocar a Rosa com narradora de uma história tão violenta e dominada por uma guerra entre inúmeros homens.
A narrativa é ágil, mas não há atropelos de acontecimentos e tudo é muito bem construído, tanto nas relações dos personagens quanto na preparação para o aumento da temperatura a cada capítulo, o que resulta em explosões em forma de guerras sangrentas e sempre com várias vítimas.
Não dá para se apegar a nenhum personagem porque o risco dele ser assassinato na semana seguinte é elevado, o que expõe a coragem dos autores e a segurança da estrutura do roteiro, que não se fragiliza com a ausência de ninguém porque sempre há um novo arco dramático iniciado quando algum é concluído com uma morte trágica.Não é por acaso que no capítulo 31 há uma catarse devastadora e surpreendente: a morte de Josué. O telespectador mais experiente tinha certeza que o protagonista morreria, mas no último capítulo e não durante um confronto com a polícia e sem o acerto de contas com Arduíno (Irandhir Santos), o grande vilão da trama. O que só comprova a ousadia dos escritores que conseguiram surpreender o público com uma sequência de tirar o fôlego e dirigida com magnitude por Rogério Gomes. Até o fato de Arduíno não ter conseguido matar o irmão foi um castigo diferente para um sujeito tão repugnante. E nem o telespectador mais atento poderia prever que a frase do assustador personagem sobre o futuro dos três irmãos era na verdade uma profecia: 'Eu vi vocês tudinho nascer, e vou matar tudinho'.
O protagonista de uma novela morrer não é algo inédito, mas é uma morte que costuma acontecer apenas no último capítulo, como em "Pecado Capital", "Alma Gêmea" (onde os mocinhos morreram) e "Império". No caso de "A Viagem", o mocinho morre e meses depois a mocinha também falece porque se trata de uma obra espírita, assim como ocorreu em "Além do Tempo" quando houve uma passagem de tempo de mais de 150 anos. Mas morrer assassinado antes do final de uma trama que consiste na rivalidade entre irmãos é de uma ousadia e tanto ---- em um capítulo de intensa carga dramática e que impactou o telespectador.
No entanto, a perda de Josué não enfraqueceu a história porque Arduíno ficou com a filha que o líder do cangaço teve com Rosa e iniciou a saga em busca da menina, liderada pela viúva do protagonista. Um clichê dramatúrgico irresistível. E vale lembrar que a audácia do enredo já tinha sido observada logo no primeiro capítulo, quando foi exibida a cena de Rosa assassinando Idálio (Daniel de Oliveira) em meio ao tiroteio entre o fazendeiro e os cangaceiros. A primeira cena da novela já foi essa. E a morte ficou ainda mais emblemática depois que toda a construção para aquele momento catártico foi exibida. Ali também ficou claro que havia uma boa sustentação para o roteiro, já que Idálio era um vilão ativo e nem assim a obra sentiu a sua perda.
As tramas paralelas são outro trunfo da produção, vide os lindos e proibidos romances entre Jânia (Alinne Moraes) ---- sem censura de beijos e cenas de sexo ---- e Otília (Alice Carvalho), e padre Bida (Rodrigo Lélis) e Valiana (Nathalia Dill). Por sinal, o drama do câncer de mama em Valiana teve uma bom enfoque em uma época em que a doença ainda era bem pouco conhecida. Vale destacar também a forte abordagem a respeito do Centro de Flagelados da Seca, onde miseráveis eram jogados para morrerem de fome e sede com o intuito de uma 'limpeza urbana'. Até mesmo a fuga do sofrimento através do mergulho na demência, com os personagens Generosa (Marcélia Cartaxo) e Seu Neném (Cláudio Jaborandy), tem uma narrativa que toca e emociona. Já a saga de Adelzira (Theresa Fonseca) teve muito sofrimento enquanto a personagem ficava obrigada com os cangaceiros e mudou para uma leve dose de diversão através de sua parceria com Gonçalves (Odilon Esteves) no teatro. É preciso citar ainda a luta de Jânia pelo voto feminino e sua candidatura para a prefeitura. Tudo se complementa harmoniosamente no roteiro.
O processo de recriação do cangaço através de Rosa foi outra preciosidade do roteiro. Aquela mãe devastada pela perda do marido e sequestro da filha conseguiu montar um time feminino para enfrentar Arduíno nas emoções finais da história. Rosa, Otília (Alice Carvalho), Petûnia (Larissa Goes) e Cheiroso (Rodrigo Garcia) foram os únicos sobreviventes do time de Josué e ganharam o reforço de Enedina (Alanys Santos). Foi empolgante acompanhar a saga derradeira deles em busca da pequena Maria e da vingança contra um sujeito que aterrorizou os personagens e o público ao longo dos capítulos. Arduíno virou o maior vilão masculino da história da teledramaturgia e com uma interpretação magistral de Irandhir Santos.
O filtro amarelado e o figurino foram alvo de críticas nas redes sociais antes da estreia da obra. Mas todas infundadas. Porque "Guerreiros do Sol" é uma novela de época, portanto, a retratação foi fiel aos anos de 1920 e 1930, o que é bem diferente do que aconteceu em "Mar do Sertão" e "No Rancho Fundo", ambos folhetins retratados no nordeste que Mário Teixeira escreveu para a faixa das 18h da Globo. As duas histórias eram contemporâneas e não pareciam justamente por conta da quantidade de estereótipos. Tudo ali era caricato e exibia um nordeste de seca e miséria, onde até personagens bem-sucedidos se vestiam com alegorias e nem pareciam ricos diante dos locais em que estavam. Ali sim as críticas eram justas e pertinentes. Já em "Guerreiros do Sol" é tudo fruto de um tempo de muitas dificuldades. Vale destacar ainda a preocupação na escalação do elenco, que foi composto em sua maioria por atores nordestinos, o que fez toda diferença. E todos os personagens tinham alguma importância. Não houve perfil deslocado, esquecido ou avulso. Cada um tinha a sua função em determinado momento da trama. Tanto que alguns só cresceram na reta final.
É preciso aplaudir ainda o desenvolvimento dos conflitos e arcos dramáticos da produção. Em meio a tantas novelas que abusam das conveniências de roteiro e situações recheadas de absurdos, houve uma preocupação em não tratar o telespectador como idiota em "Guerreiros do Sol". Tudo foi precisamente configurado, tanto nas viradas quanto nas atitudes dos personagens, que seguiram a linha narrativa com coerência e sem sobressaltos. Ninguém teve uma mudança brusca de personalidade para facilitar a descoberta de algum segredo, por exemplo, ou aconteceu algo que provocasse alguma fragilidade no conjunto da obra.
Os autores que escreveram a trama têm um excelente currículo e justamente com enredos destinados a faixas mais tardias, hoje todas extintas por conta justamente do streaming. George Moura e Sérgio Goldenberg produziram a elogiada "O Canto da Sereia" em 2013 e a primorosa "Amores Roubados" em 2014, duas minisséries que prenderam a atenção do público mesclando suspense e drama. A dupla ainda escreveu o excelente remake de "O Rebu", em 2014, e adaptou brilhantemente uma novela repleta de empolgantes enigmas e personagens sombrios. Também foi responsável pela densa "Onde Nascem os Fortes", exibida em 2018, que também teve muitas qualidades, embora o roteiro tenha perdido o fôlego. Quadro produções de alto nível.
"Guerreiros do Sol" não teve uma grande repercussão, comparada a folhetins como "Todas as Flores", do Globoplay, e "Beleza Fatal", da HBO Max, duas produções elogiadas e que conquistaram o público. No entanto, em nível de estruturação de enredo, coerência, ousadia, direção, elenco, fotografia, construção de personagens e intensidade dramática, a novela que retratou o cangaço de forma irretocável e corajosa é a melhor já feita por uma plataforma de streaming e a melhor produção de 2025. Uma verdadeira obra-prima.
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