quinta-feira, 18 de julho de 2024

"Pedaço de Mim" é um sopro de criatividade em meio a um marasmo de ideias

 Em meio ao catastrófico cenário atual da teledramaturgia, onde as novelas inéditas pecam com enredos frágeis, repetitivos e monótonos, e até as plataformas de streaming nada apresentam como alternativa, é um suspiro de esperança assistir ao novo produto da Netflix: "Pedaço de Mim", escrito por Angela Chaves e dirigido por Maurício Farias. A série, de temporada única com 17 episódios já disponíveis, tem a alma de um bom folhetim e satisfaz quem está órfão do gênero em 2024. 


Produção de A Fábrica, "Pedaço de Mim" é uma história de sonhos impactados por reviravoltas, perdas e aprendizados. Liana (Juliana Paes), uma mulher que sonha em ser mãe, acaba tendo sua trajetória atravessada por eventos de alta força dramática, que afetam seu casamento com Tomás (Vladimir Brichta). Após descobrir a infidelidade do marido, a noite de Liana acaba em uma relação não-consensual e em uma raridade científica, a superfecundação heteroparental: uma gravidez de gêmeos de pais diferentes. Liana, disposta a lutar para manter a situação em segredo, se vê em meio a uma confusão de sentimentos, sem saber se conseguirá amar igualmente as duas crianças e manter suas relações familiares da mesma forma.

A autora criou uma história ousada, criativa e que instiga o público, prendendo até o final. Diante de um vazio de novidades que a atual fase da teledramaturgia enfrenta, é um alento acompanhar um enredo que envolve e provoca discussões internas em quem está assistindo. Porque nada naquela trama é preto no branco.

Tudo que acontece ao longo dos episódios vai causando um dilema moral, onde todos têm seus sentimentos colocados à prova à medida que o novelo vai se desenrolando. E nada mais folhetinesco do que isso. É claro que não tem como classificar a série como uma novela porque, de fato, não é. Mas todos os elementos estão ali, incluindo os famigerados núcleos paralelos. E todos bem desenvolvidos. Até os desfechos não deixaram a desejar ou apresentaram algum fio solto, o que costuma ser comum. 

Angela Chaves ainda conseguiu um feito raro: aprofundou todos os personagens em apenas 17 episódios. Não há perfil raso ou sem função na trama. A figura conhecida como 'orelha', por exemplo, que é criada apenas para ouvir a mocinha ou o vilão desabafar, não existe. E a potência do enredo central daria, sim, uma novela das nove na Globo. Novos núcleos secundários precisariam ser criados, mas os da série ficariam ainda mais conflituosos e atrativos. Obviamente, o ritmo mudaria, o que também seria compreensível. Mas haveria a possibilidade de abordar uma rejeição inicial de Liana em cima de seu filho originado por contra de um estupro, o que acontece muito rapidamente na série. Aliás, é uma questão que gera um incômodo, ainda mais diante do atual momento do país em que políticos tentaram criminalizar o aborto realizado por vítimas de violência sexual, caso a gestação estivesse da vigésima segunda semana em diante. Liana compartilhar da rejeição de seu então marido pela criança, ao menos nos meses iniciais, seria um arco interessante e totalmente humano. 


A riqueza dramática do enredo envolvendo uma mulher que dá à luz a gêmeos de pais diferentes, sendo um desses pais um estuprador, move a série, assim como o fato de muitos não acreditarem em Liana quando ela diz que foi abusada por Oscar (Felipe Abib), o que a faz omitir a importante informação ao longo do tempo. Não é por acaso a protagonista contar aos filhos apenas no último episódio o que realmente aconteceu com ela quando estava bêbada e acabou estuprada pelo sujeito em sua própria casa. A figura do estuprador é a causa da tensão do enredo até o décimo episódio, estando ele presente em cena ou não. E no início é possível entender as razões de Tomás em não querer aquela criança, ainda que o sujeito tenha traído Liana com Claudia (Yohama Eshima). Já a partir da catarse, que resulta em uma tragédia, o ritmo e o clima da trama mudam. Aquela adrenalina sai de cena e entra um tom mais contemplativo em cima da família desestruturada e há uma ótima sacada na trajetória de Tomás, que se mostra parecida com a de Guilherme de Pádua, assassino da atriz Daniela Perez, guardadas as devidas proporções. Um retrato fiel do Brasil, tanto do passado quanto do atual. Ele se transforma em uma figura abjeta, ainda que tenha dado sinais anteriores que não tinha lá muita índole.


Há também uma preocupação em não deixar a história pesada demais e aí que entra em cena o núcleo de Silvia, interpretada pela irretocável Palomma Duarte. A irmã de Tomás é uma mulher de fácil identificação e seu arco dramático é digno de um delicioso romance da "Sessão da Tarde". Toda a construção do amor da personagem ao lado de Vicente (João Vitti), ambos médicos obstetras, é muito bonita, assim como sua relação com o filho, Inácio (Bento Veiga), que começa a perder a visão ainda criança e chega à fase adulta cego. Todas as aflições daquela mãe são compreensíveis diante do medo que sente quando o filho único começa a seguir a vida sem sua ajuda. E seu receio em oficializar a união com Vicente é outra situação que desperta empatia. Ao mesmo tempo, a personagem está presente em todos os dramas centrais e vira um esteio na vida de Liana. As duas têm uma amizade sólida e de muita cumplicidade. As cenas são sempre ótimas. Aliás, Juliana Paes e Palomma são os grandes nomes da série. Impressiona como Juliana escolhe bem seus papéis e Liana já está na galeria de melhores de sua carreira. A atriz transmite toda a força que aquela mulher tem, a ponto de precisar renová-la a todo tempo para não correr o risco de desmoronar. Já Palomma interpreta uma das personagens mais cativantes (senão a mais) de sua trajetória artística. Ela ilumina a tela quando aparece. Dá gosto de ver. 


O elenco é bem escalado e todos têm momentos de destaque, ainda que uns mais que outros. Vladimir Brichta se mostra seguro em cena e consegue expor todas as facetas do Tomás, que é um perfil bem mais interessante que o monotemático coronel Egídio do remake de "Renascer". Felipe Abib também se destaca na pele do canalha Oscar, mais um perfil sem escrúpulos que interpreta. João Vitti é outro que sobressai na pele do doce Vicente. E como é bom ver veteranos no time, como Jussara Freire, Analu Prestes e Antônio Grassi. Jussara provoca raiva no público diante do sarcasmo cruel de Norma, ao mesmo tempo que desperta pena diante do sofrimento daquela mãe que nunca superou a morte do filho e acaba partindo em meio ao Alzheimer. Analu e Antônio brilham na pele Olinda e Jonas, um casal elitista, preconceituoso e frio. Vale elogiar ainda Dani Ornellas (Betina), Marta Nowill (Débora), Nando Cunha (Sérgio), Agatha Marinho (Julia), Rui Ricardo Diaz (Dante), Mário Borges (Cezar), Bento Veiga (Inácio) e Amanda Spanner, uma grata revelação na pele da carismática Bia, além de Yohama Eshima (ótima na pele da detestável Cláudia). 


A série tem um conjunto harmônico e apenas no décimo sétimo episódio há uma sensação de correria por conta de dois 'plots' que poderiam ter sido desenvolvidos com mais calma em um ou dois episódios a mais: o do casamento e o do incêndio. Duas situações catárticas que renderiam bons desdobramentos, caso fossem explorados com mais profundidade. Há também algumas situações desnecessárias e que exigem muita força de vontade do telespectador, como o excesso de coincidências. A conveniência de roteiro é algo constante na teledramaturgia, mas é preciso um certo cuidado para não exagerar. Oscar procurar justamente a médica (interpretada por Caroline Figueiredo) que estava na palestra de Vicente sobre o caso único de superfecundação para analisar o resultado do exame de DNA foi difícil de engolir, como o fato de Liana ser a terapeuta da filha de Dante, professor por quem se apaixona. E não havia necessidade para a perda de memória de Marcos, pois é um clichê batido e que só serviu para reiterar a história, um recurso até plausível em uma novela longa, mas não em uma série curta ---- houve a sensação de uma ideia de última hora para preencher o tempo da reta final. No entanto, são problemas pequenos e nada que tenham prejudicado a qualidade da produção, que ainda tem uma direção competente de Maurício Farias, após seu último bom trabalho como diretor na Globo em "Um Lugar ao Sol", novela de Lícia Manzo. 


"Pedaço de Mim" consagra Angela Chaves como a grande autora que sempre foi --- basta lembrar do primoroso remake de "Éramos Seis", adaptado por ela na Globo em 2019 ---- e tem tudo para ser a melhor produção nacional do ano, que até o momento enfrenta um período turbulento no audiovisual, onde a solução para os problemas virou o desenvolvimento de remakes ou continuações de folhetins de sucesso. A atual série da Netflix representa um sopro de criatividade em meio a um marasmo de ideias.

20 comentários:

  1. Tava esperando sua crítica Sérgio. Achei a série maravilhosa, te prende e da um interesse enorme em querer acompanhar tudo aquilo até a final. Os atores estão maravilhoso, especialmente mesmo Juliana e Palomma como você citou. Vladimir precisa urgente fazer um mocinho ou personagem cômico, porque o ódio que a gente sente pelo Thomáz não tá escrito hahaha. Genial!
    Mas apesar de todos as imensas qualidades, alguns furos são visíveis e situações forçadas. Destaco duas: a forma como a Silvia descobriu a história da superfecundação. Quando a Liana procurou o Vicente pra descobrir a paternidade das crianças, ela teve que dá o nome completo dela óbvio. Como que ele logo não associou que ela poderia ser parente da Silvia? É o mesmo sobrenome, e não é um comum. O fato de ter sido uma coincidência não colou; E também eles aparecendo no bar do Oscar no dia que o Inácio tocou na inauguração. Eles não fizeram nenhuma pesquisa sobre o bar, viram alguma postagem? Naquele ano já tinha Instagram, Facebook. Se fosse no ano de 2006 até dava pra entender.
    E o incêndio do final, achei exagerado. Ficou nítido que a autora só queria que o Tomaz fosse punido no final e inventou um crime pra justificar a volta dele pra cadeia.
    Contudo, tirando esses tropeços, foi um ótimo produto dramatúrgico é muito gostoso de assistir. Espero que a Netflix invista mesmo nesse mercado, porque o resultado foi satisfatório.

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  2. Assisti e adorei! Muito bem feita! abração,chica e lindo fds!

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  3. qd voltar a assinar netflix quero ver. beijos, pedrita

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  4. A série/ novela é muito boa! Tudo redondo. Ritmo excelente. Em nenhum momento cai. As situações são verossímeis. As atuações muito boas. Adoro ver Paloma Duarte em cena! Juliana maravilhosa! Alta produção! Assistam!

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  5. Acho que um termo que funcionaria neste caso e o termo Mininovela, na latinoamérica e usado com muita frequência, a novela é invenção de nossa latinoamérica e é rentable usar os termos de nossos irmãos latinos. Mas falando verdade toda miniserie da globo acaba sendo mais uma novela de poucos capítulos, que falem "A presença de Anita" "Hilda Furacão" ou "sete mulheres" na realidade pouca diferença vejo entre um produto de novela e uma minissérie.
    Agora sobre o produto. Não consegui ter ao final a mesma sensação de muita gente, acho que a primeira metade foi muito mais feliz que a segunda metade, sento que cuando o personagem de Britcha endoidou a mininovela endoidou de vez com ele. Senti o "jump the shark" aquele termo usado para falar de cuando algo así dos reales da coerência, hubiese preferido que o vilão hubiese permanecido sendo Oscar, a única maluquice que hubiese aceptado e a de Oscar ser Pai de Mateo e Tomas pai de Marcos, hubiese Sido uma narrativa provocativa. Más se bem não achei perto a excelência também fica longe da ruindade. Foi interessante mesmo.

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  6. Achei uma produção ok e que serviu para apresentar o gênero telenovela ao povo da Netflix. Sim, é uma novela e não uma série. Aliás, o erro foi transformar uma novela em algo de 17 capítulos. Acho que isso prejudicou muita coisa. Gosto da temática inicial, mas acho que faltou aprofundar muitos temas. O filho da Paloma Duarte, por exemplo, ficou cego, mas não foi mostrado esse processo. Teve a passagem de tempo e ele já estava cego. Acho que a personagem da Paloma poderia ter tido uma história própria, além desses conflitos com o filho. A personagem da Jussara Freire mal foi mostrada e já morreu logo. Faltou aprofundar o tema. Houve vários cortes secos em cenas catárticas. Faltou um cuidado melhor com isso. Por fim, achei a trajetória do Tomás péssima e forçada. Sério que uma pessoa sai do macho tóxico para um incendiário da própria casa e apoiado na bíblia? Enfim, acho que muita coisa não foi desenvolvida a ponto de se acreditar nessas mudanças. Faltou mais capítulos.

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  7. Análise perfeita em todos os pontos!! Com certeza um dos melhores personagens da Juliana, assim como provavelmente o maior do Vladimir! Palomma 🫶

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  8. Olá, tudo bem? Pedaço de Mim, com 17 episódios, é uma minissérie e não uma novela, como leio por aí. Abs, Fabio www.blogfabiotv.blogspot.com.br

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  9. Olá, Sérgio. É incrível como essa série se desenvolve sem correria e ainda consegue descartar cada personagem de alguma forma, Juliana Paes está perfeita na pele da Liana assim como Paloma está radiante como Silvia, a personagem traz um conforto inexplicável. Jussara é tão boa que chega ser lamentável não estar em nenhuma novela atual, apesar que não está perdendo nada rs.

    Dani Ornellas é uma atriz magnífica e vai além de qualquer personagem que der a ela, tirando de letra. Essa série tem uma cara de novela, porém acredito eu que foi melhor assim; Ser série do que uma novela que pode ter pedras no caminho ao ser desenvolvida. Ainda mais na situação atual que a Globo enfrenta

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