Brilhantemente defendida por Sophie Charlotte, Maíra é uma ótima mocinha de "Todas as Flores"

 Nada pior para uma novela do que uma mocinha idiota. O excesso de ingenuidade de uma protagonista funcionava há mais de 30 anos, mas tem muito tempo que a fórmula da burrice utilizada para o roteiro andar não é mais aceita pelo público. E João Emanuel Carneiro soube construir Maíra com várias nuances que deixam clara a esperteza da personagem brilhantemente vivida por Sophie Charlotte em "Todas as Flores". 

Vale lembrar que os dois maiores fracassos do autor se deram com folhetins onde as mocinhas eram exageradamente burras. Em "A Regra do Jogo" e "Segundo Sol" era impossível o telespectador sentir qualquer empatia por Toia (Vanessa Giácomo) e Luzia (Giovanna Antonelli), respectivamente. Claro que as tramas foram um fiasco pelo conjunto da obra e não por culpa exclusivamente das protagonistas, mas não deixa de ser uma observação relevante. Até porque João também criou protagonistas que eram inteligentes e davam a volta por cima, como Preta ("Da Cor do Pecado"), Donatela ("A Favorita") e Nina ("Avenida Brasil") ---- ok, a questão do pendrive foi um acidente de percurso. 

Maíra reúne as melhores características das mocinhas mais queridas do autor. A perfumista deficiente visual nunca foi boboca. E a esperteza da protagonista sempre foi mostrada de forma sutil. Mesmo sem declarar abertamente, ficava claro que a personagem nunca acreditava 100% em Zoé (Regia Casé) e principalmente Vanessa (Letícia Colin).

Aceitou morar com as duas porque não tinha muita opção depois do falecimento do pai ---- assassinado por Zoé. E sempre tinha uma expressão de desconfiança a cada gesto da mãe e da irmã. Era perceptível. Muitas vezes parecia uma troca de fingimentos a relação do trio. As vilãs eram falsas, mas não cogitavam que a mocinha algumas vezes fazia o jogo delas. Querendo ou não, as constantes afirmações da madrinha Judite (Mariana Nunes) ecoavam na cabeça de Maíra. 

E Sophie Charlotte conseguia passar o receio da protagonista com uma precisão impressionante. Aliás, primeiramente é preciso aplaudir o desempenho da atriz na representação de uma pessoa portadora de deficiência visual. Não é fácil esse tipo de interpretação sem soar caricato. Mas Sophie faz parecer algo simples. Vale lembrar que a intérprete foi escalada inicialmente para viver Vanessa e Letícia Colin seria Maíra. Depois houve a inversão de papéis e ficou comprovado o quão a troca foi acertada. Com certeza Letícia faria a personagem com igual brilhantismo, mas estava na hora mesmo de ganhar uma vilã para chamar de sua após tantas boazinhas em sequência. E Sophie estava pronta para o desafio de viver uma mocinha tão rica dramaticamente. 

A virada de Maíra acontece quando Vanessa arma para que todos achem que a irmã vendeu a fórmula secreta de um perfume para a concorrente. E ainda chantageia Zoé para que a mãe interne a filha na fundação que mantém meninos e meninas presos em regime de trabalho escravo ----- a quadrilha ainda pratica inseminação artificial nas mulheres para a venda dos bebês. A vilã acaba obedecendo a ordem da filha e manda a perfumista para o local de puro terror. É lá que a mocinha se dá conta que tudo o que Judite lhe contou sobre Zoé e Vanessa era verdade e planeja vingança. A protagonista é tão bem construída que a deficiência visual é apenas um detalhe. A história existiria da mesma forma se ela não fosse cega. E a aparente fragilidade da falta de visão se mostra como uma força através dos outros sentidos apurados, com o olfato e sua sensibilidade aos movimentos. Isso ficou visível na fuga do cativeiro. Toda a sequência com o foco nas expressões faciais de Sophie, expondo sua percepção com a aproximação da estrada, foi muito bem realizada. 

"Todas as Flores" é uma novela que prende o telespectador e uma das razões é porque há uma mocinha para torcer. O telespectador quer saber como Maíra vai se livrar das emboscadas e iniciar sua vingança. O público tem empatia por aquela mulher tão bem defendida por Sophie Charlotte, uma atriz que nunca decepciona em cena.