sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Reprise de "A Favorita" reforçou a potência da trama central e os vários problemas dos núcleos secundários

 A reprise de "A Favorita" no "Vale a Pena Ver de Novo" está em plena reta final. A decisão da Globo de reprisá-la surpreendeu muita gente, afinal, a novela de João Emanuel Carneiro tem cenas fortes. Infelizmente, a suspeita do público foi confirmada. A reprise foi mutilada. Mas houve uma preocupação em cortar muito mais os núcleos paralelos do que o central. Até as cenas icônicas pesadas foram exibidas na íntegra, como o assassinato de Salvatore e de Gonçalo, mas várias cenas com frases irônicas da grande vilã foram eliminadas. Uma pena. E, apesar das edições grosseiras, a reexibição confirmou o que todos já sabiam: a potente trama central fez a história entrar para a galeria de grandes produções da teledramaturgia, enquanto quase todos os núcleos paralelos merecem o esquecimento. 

  A novela foi emblemática porque começou a ser exibida para o público sem as 'determinações' clássicas a respeito de quem era mocinha e quem era vilã. O telespectador não ficou na condição privilegiada de saber o contexto do enredo, muito pelo contrário, ele simplesmente passou a fazer parte daquela trama, podendo ser enganado ou não pelas duas principais personagens. Eram duas versões de uma mesma história e a pergunta exposta no teaser chamava atenção: "Quem está falando a verdade?". Um dos atrativos era justamente bancar o detetive, analisando o comportamento dos perfis.

O público se viu na mesma condição dos personagens, não podendo julgar quem acreditava ou não em quem. Afinal, o telespectador ficou tão em dúvida quanto várias figuras pertencentes ao enredo tão bem trabalhado pelo autor. Porém, João, muito inteligentemente, soube induzir com competência, abusando de estereótipos clássicos em folhetins.

Era normal achar que a loira, de olhos claros e cara de sofrida (que havia cumprido pena de 18 anos por ter assassinado um homem) era inocente e tentava se vingar de seus delatores, após ter ficado longe da filha (Lara - Mariana Ximenes) por tanto tempo. Flora (Patrícia Pillar) carregava todos os atributos de uma vítima injustiçada em busca de justiça.

Ao mesmo tempo, Donatela (Cláudia Raia), uma mulher rica, arrogante, elitista e perua tinha todas as características de uma vilã em potencial. Para culminar, era passional ao extremo. E a personagem sempre garantiu que Flora era uma demônia que havia assassinado seu marido, Marcelo (Flávio Tolezani), a sangue frio. A novela foi se desenvolvendo em torno da disputa de 'verdades', e, apesar das induções do autor, não dava para ter certeza a respeito de quem era culpada ou vítima da situação. Havia um clima de suspense constante que deixava a trama imperdível, onde as peças do quebra-cabeças eram encaixadas aos poucos, à medida que os capítulos se desenrolavam. Aliás, essa ousadia do escritor provocou um natural estranhamento do público, refletindo em uma audiência abaixo do esperado nas primeiras semanas. A rejeição implicou na antecipação da revelação da identidade da assassina. O autor queria esperar até o capítulo 100, mas veio bem antes (por volta do 60). 


E a história caiu do gosto popular assim que a grande revelação foi feita em uma das melhores viradas da teledramaturgia. Após apontar uma arma para Flora, ameaçando matá-la, Donatela é desarmada pela rival, que tira sua máscara revelando seu instinto assassino, enfatizando que a perua nunca teria coragem de apertar o gatilho, ao contrário dela que era uma assassina. A partir de então, o enredo começou a seguir o seu caminho tendo a vilã e a mocinha claramente expostas. A reviravolta se deu antes da metade da trama e serviu para destacar ainda mais Patrícia Pillar e Cláudia Raia na história, que passaram a ser bem exigidas. Todas as sequências de flashback do assassinato de Marcelo foram impactantes e desnudaram a psicopatia de Flora. Mas nem foi o bastante. A primeira cena da vilã sem máscaras diante do público foi quando usou a arma que Donatela tinha apontado para ela anteriormente para matar Doutor Salvatore (saudoso Walmor Chagas). Tudo diante da própria Donatela. Foi uma cena chocante. Um plot twist de respeito. 

Com a revelação, todo o passado das protagonistas foi ficando ainda mais em evidência. As duas cresceram como irmãs e eram unha e carne, pois Donatela perdeu os pais em um acidente e acabou adotada pela família de Flora. Ambas tinham vocação para o canto e acabaram formando uma dupla sertaneja (Faísca e Espoleta) de relativo sucesso ("Beijinho Doce" era a música que marcava a parceria), cujo 'empresário' era Silveirinha (Ary Fontoura), um caça-talentos ---- que depois virou mordomo de Donatela e ainda foi para o lado da Flora quando a então patroa se viu arruinada. A turnê da duas acabou interrompida quando Donatela conheceu Marcelo, provocando imenso ciúmes de Flora, que acabou se envolvendo com o malandro Dodi (Murilo Benício) ---- a vilã ainda mandou sequestrar o filho da 'amiga' (Halley - Cauã Reymond) e teve um caso com Marcelo, desestabilizando de vez o relacionamento com a 'quase irmã.' Para culminar, engravidou de Lara e fingiu que era filha de Marcelo, mas na verdade era fruto de seu caso com Dodi. E o presente acabou repetindo o passado porque as duas se envolveram amorosamente com o jornalista Zé Bob (Carmo Dalla Vecchia) 

O enredo central era repleto de detalhes e foi desenvolvido com maestria por João Emanuel Carneiro, que soube rechear a trama com drama, suspense, viradas e thriller. Até porque uma das cenas mais impactantes da história da teledramaturgia foi protagonizada por Patrícia Pillar e Mauro Mendonça, intérprete do ricaço Gonçalo. Pouco depois de ter descoberto que Flora era uma psicopata assassina, o empresário caiu em uma emboscada armada pela vilã ---- que já havia substituído os remédios do avô de Lara por balinhas ---- e teve um infarto quando viu todos os cômodos de sua mansão ensanguentados, enquanto ouvia a víbora dizer que sua neta e esposa (Irene - Glória Menezes) tinham sido assassinadas por ela. Uma cena de terror psicológico extraordinária, onde Patrícia e Mauro deram um verdadeiro show de atuação.

Todavia, os núcleos paralelos eram muito ruins. Apenas uma trama secundária teve um bom desenvolvimento e despertou atenção do telespectador: o drama de Catarina (esplêndida Lília Cabral), que era constantemente agredida pelo marido (Leonardo - Jackson Antunes). No último capítulo, ficou até subentendido que o violento homem abusava da filha do casal, interpretada por Clarice Falcão. Os fortes conflitos resultavam em ótimas cenas e ainda marcou a estreia de Alexandre Nero nas novelas ---- o ator viveu o verdureiro Vanderlei, que era apaixonado por Catarina. Aliás, a personagem defendida com brilhantismo por Lilia se envolveu em um triângulo amoroso que despertou discussões na época. Além do romance velado com Vanderlei, Catarina teve uma relação com Stela (Paula Burlamaqui). Porém, João Emanuel Carneiro sempre prestou um desserviço em se tratando de homossexuais, vide Orlandinho (Irã Malfitano). O personagem era apaixonado por Halley, mas terminou feliz ao lado de Maria do Céu (Deborah Secco), ex-garota de programa com quem acabou criando amizade. Aliás, o núcleo da ex-prostituta era um dos muitos deslocados. Tanto que o grande Nelson Xavier acabou saindo logo da história (Edvaldo, pai de Maria, foi atropelado por um caminhão) e Roberta Gualda (Greice, irmã de Maria) praticamente sumiu da trama. 

O romance de Copola (Tarcísio Meira) e Irene (Glória Menezes) proporcionou algumas boas cenas dos veteranos, mas o personagem de Tarcísio tinha muito menos destaque do que o papel de sua esposa na vida real. O ator foi um figurante de luxo. Já as situações vividas pela ex-manicure Cilene (Elizângela) e suas meninas que eram 'oferecidas'' como acompanhantes de homens ricos pela cafetina ----- Manu (Emanuelle Araújo), Sharon (Giovanna Ewbank) e Melissa (Raquel Galvão) eram até divertidas, mas acabavam andando em círculos. E o que dizer da trama protagonizada por Augusto Cézar (José Mayer)? O alienado dizia ver discos voadores e nunca teve relevância para o roteiro. Uma situação patética. 

 Outro núcleo paralelo que se mostrou um equívoco foi o triângulo protagonizado pelo prefeito Elias (Leonardo Medeiros), a esposa Dedina (Helena Ranaldi) e o amante Damião (Malvino Salvador). Até porque o desfecho da situação, onde a mulher acabou humilhada e agredida de todas as formas, enquanto o homem nem foi visto como grande culpado expôs um machismo absurdo. E vale lembrar que a novela foi em 2008. Imagine o conflito sendo visto em 2022. Mais uma situação decepcionante: o núcleo do político corrupto Romildo (Milton Gonçalves), que vivia em conflito com os filhos Alícia (Taís Araújo) e Didu (Fabrício Boliveira). Nas primeiras semanas, até parecia que aquele drama familiar seria atrativo. Mas os personagens foram perdendo cada vez mais destaque até praticamente desaparecerem no enredo. Taís Araújo tinha sido presenteada pelo autor com a mocinha Preta, em "Da Cor do Pecado" (2004) e com a interesseira Ellen, em "Cobras & Lagartos" (2007), mas ganhou uma péssima personagem na terceira parceria com João Emanuel. E outra intérprete que ganhou um papel ruim foi Juliana Paes. A jornalista Maíra teve poucas cenas, mas a sorte da atriz foi o convite de Glória Perez para protagonizar "Caminho das Índias", produção que substituiu "A Favorita". Acabou obrigada a deixar a história e a jornalista virou uma das vítimas de Flora. 

Vale citar também a saga desinteressante do tímido Cassiano (Thiago Rodrigues). Seu sonho em ser cantor pouco acrescentou e era uma das partes mais chatas do folhetim. Outros perfis também ficaram deslocados, desvalorizando seus intérpretes, como Tereza (Rosi Campos), Lorena (Gisele Fróes), Átila (Chico Diaz), Dulce (Selma Egrei), Arlete (Ângela Vieira), Cida (Cláudia Ohana), Amelinha (Bel Kutner), Rita (Christine Fernandes), Diva (Giulia Gam), Iolanda (Suzana Faini), Arlete (Ângela Vieira), entre outros. Mas em meio a tanto desperdício de talento, é preciso ressaltar que todos os atores envolvidos na história central tiveram momentos grandiosos. Patrícia Pillar ganhou a melhor personagem de sua carreira e Flora está na lista de melhores vilãs da teledramaturgia. Cláudia Raia ganhou a personagem mais ousada de sua trajetória na televisão e honrou a carga dramática de Donatela, um perfil bem distante dos tipos mais exagerados que a acompanham nas novelas. Ary Fontoura fez um Silveirinha com ares macabros e sua interpretação impressionou. Genésio de Barros brilhou como Pedro, o sofrido pai de Flora, cuja palavra era sempre desacreditada por todos. Mariana Ximenes esteve ótima como Lara, mesmo diante de tanta chatice que envolvia a mimada garota. Murilo Benício imprimiu um deboche delicioso ao malandro Dodi. Mauro Mendonça fez de Gonçalo um dos mais queridos da novela, após um início onde o empresário aparentava ser um vilão. Já Glória Menezes mais uma vez mostrou a razão de ser considerada uma das melhores atrizes do país. Irene despertava a raiva do público diante de tanta ingenuidade diante das armações de Flora, mas como era bem interpretada. A cena em que Irene descobriu a verdadeira identidade da vilã foi a mais aguardada da novela. 

"A Favorita", dirigida com competência por Ricardo Waddington, não foi uma novela impecável em virtude dos problemas em praticamente todos os núcleos paralelos, mas foi a trama mais ousada de João Emanuel Carneiro. Só em ter demonstrado coragem de enganar o telespectador, junto com os personagens, e não contar de cara quem era a mocinha e a vilã, em pleno horário nobre da Globo, já merece todos os elogios possíveis.  Entrou para a galeria de grandes folhetins da teledramaturgia com mérito. É preciso ainda mencionar a genialidade da abertura que contava toda a história e revelava o maior mistério do roteiro, mas que muita gente só reparou depois que tudo foi revelado. Um novelão que vale a pena ver de novo. 


25 comentários:

  1. Realmente a trama central é perfeita, mas as paralelas nunca vi tão ruins.

    ResponderExcluir
  2. Sergio vc não gostava da Lara na novela? Vc não torcia para ela ficar com o Halley?

    Acrescento na atuação o Cauã Raymond que está muito bem no papel.

    ResponderExcluir
  3. As novelas da Globo, principalmente a partir da década de 2000, na maioria das vezes alternam em termos de qualidade das tramas centrais e paralelas. E no seu blog, Sérgio, conseguimos ver com clareza o que se "lastima e estima" a respeito dos folhetins, em referência a uma cena de Maria do Céu (Deborah Secco) em "A Favorita" (2008).

    Guilherme

    ResponderExcluir
  4. Passando pra deixar um abraço e desejar tuuuuudo de bom! Lindo fds! chica

    ResponderExcluir
  5. Olá, tudo bem? A Favorita é a novela que mais gosto do autor João Emanuel Carneiro. Abs, Fabio www.blogfabiotv.blogspot.com.br

    ResponderExcluir
  6. Essa novela é sensacional e tem várias reviravoltas na trama, uma das melhores do JEC. Amando Todas as Flores, está vendo?
    Big beijos
    www.luluonthesky.com

    ResponderExcluir
  7. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  8. Tempos houve em que me perdia a ver novelas com estes actores famosos. Gostei de rever e ler sobre isso aqui.

    Beijos e boa semana!

    ResponderExcluir
  9. Sérgio, isso é o que chamo de novelão, nossa!
    Seu texto me fez entender vários detalhes da novela que eu ainda não havia compreendido...Muito bom mesmo!!
    Eu adoro as novelas mais antigas e especialmente a música da abertura de A Favorita!!
    Beijos e uma ótima semana amigo!!

    ResponderExcluir
  10. Bem cara para ser justo, eu acho que tudo é bem imperfeito. Eu assisto no globoplay após a insistência dos meus amigos, e tenho que dizer "nós somos condescendentes com o centro"
    a gente sempre esquece o problema porque é aquela novela legal com aquele plot twist. Mas por trás disso você vê uma série de tramas de perseguição que são em um momento mais bobas que no último. Perdi as contas de quantas vezes Donatela fez um plano para os caídos de Flora, mas no final magicamente é resultado com a estupidez do protagonista. Essa trama com o DVD ainda em 2008 é ridículo, qualquer pessoa com saber faz uma cópia. Gonçalo morreu por acidente ele só precisa ligar para Irene e pedir para não ir para casa. Até o plano com Flora no teatro é uma loucura quanta gente estava no teatro naquele dia. O fantasma Donatela. Tudo isso é um absurdo. Os fanboys do JEC me fizeram gostar ainda mais do Walcyr, para as pessoas um é o gênio e o outro o lixo. Mas a realidade é que Donatela fosse apresentada como protagonista de Walcyr, o céu pode queimar. Ela é muito burra e o desempenho é muito ruim..

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É verdade que Walcyr faz coisas que se Jec fizer será perdoado pela crítica e pelo twitter. A estupidez em JEC é ainda pior do que na novela de Walcyr.
      Fabio

      Excluir
  11. As séries da Globo, principalmente a partir dos anos 2000, costumam alternar na qualidade dos episódios centrais e paralelos.
    São textos que me permitem entender alguns detalhes do romance que ainda não entendo. Muito bom, acredito! !
    Adoro novelas antigas, principalmente a música de abertura de A Favorita! !

    ResponderExcluir
  12. Achava os dois insuportáveis e mimados, anonimo.

    ResponderExcluir
  13. Mt obrigado pelo carinho de sempre, Guilherme!

    ResponderExcluir
  14. Que bom que gostou, Dri. E a abertura é memorável.

    ResponderExcluir
  15. Entendo perfeitamente o seu ponto de vista, anonimo!

    ResponderExcluir