"Dona de Mim" aborda a questão da violência com necessário e incômodo realismo

 Os capítulos recentes da atual novela das sete, escrita por Rosane Svartman e dirigida por Allan Fiterman, exibiram cenas da invasão policial em uma favela e todos os reflexos que esse tipo de operação provoca na vida dos moradores e dos próprios policiais através da figura do mocinho. Foram situações que geraram um forte impacto emocional nos personagens de "Dona de Mim" e também no público. 

A trama central anda maçante com os desdobramentos em torno da guarda da Sofia (Elis Cabral), vilanias repetitivas do Jaques (Marcello Novaes) e situações jurídicas que são constantemente utilizadas como conveniências de roteiro. A 'vilanização' de Samuel (Juan Paiva) para causar uma turbulência em sua relação com Leona (Clara Moneke), que anda cada vez mais obcecada pela menina, também prejudica a história. Por isso foi tão importante deixar de lado esse arco, ainda que por apenas dois capítulos, e transferir o foco para o núcleo secundário da Barreira e todos os conflitos que rodeiam a vida controversa de Ryan (L7nnon). 

As cenas da invasão constituíram um dos pontos altos da narrativa, demonstrando a força estética e dramática da novela. A direção soube explorar com maestria a tensão do momento, criando uma atmosfera de urgência que prendeu o telespectador desde o primeiro segundo.

Houve uma preparação para a ação da polícia, algo essencial para calibrar a adrenalina daquela sequência, que exigiu um intenso trabalho da equipe com tomada de câmeras, coordenação dos figurantes, foco em imagens que remeteram a cenários reais (como o quadriciclo rosa de uma criança jogado no chão) e pausas de elementos-chave, como o estado de choque de Marlon enquanto havia uma intensa troca de tiros e quando o mocinho, armado com um fuzil, se deparou com Ryan apontando uma arma para ele. 

Aliás, o momento catártico do enfrentamento dos ex-amigos de infância foi de tirar o fôlego. Marlon e Ryan choraram, abaixaram suas armas e logo depois Ryan salvou a vida do policial. Um show de atuação de Humberto Morais e L7nnon. Duas gratas revelações da novela, ainda que Humberto já tenha brilhado na série "Sutura", da Prime Video, e na novela infantil "Poliana Moça", do SBT. E o embate dos personagens foge do maniqueísmo porque, embora Marlon seja apresentado como um heroi sem defeitos, Ryan não é um bandido. O rapper foi preso por envolvimento com o tráfico, cumpriu sua pena e depois se viu coagido pelos traficantes por conta de uma dívida contraída por seu irmão. Para impedir que o caçula tivesse um destino igual ao seu, Ryan virou refém dos ex-aliados e a situação mostra que não é tão fácil assim deixar o tráfico. 

A operação ficcional foi tão mergulhada na realidade que também deixou inocentes feridos, como o caso de Jeff (Faiska), que foi atingido por uma bala perdida. E vale um adendo para a atuação arrebatadora de Marília Coelho, que demonstrou com total entrega a dor daquela mãe diante da possibilidade de perder o filho, depois da morte trágica de seu marido, atingido por engano por um policial. A atriz faz apenas breves aparições na novela e agora teve a chance de brilhar. 

A sequência ter ido ao ar duas semanas depois da operação policial nos Complexos da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro, que teve 121 pessoas mortas, sendo quatro policiais, aumentou a força dramática da ficção. E mais uma vez o trabalho de Allan Fiterman merece ser aplaudido. Os cortes rápidos, os planos em tomadas aéreas feitos por drones alinhados ao som diegético dos tiros, gritos, passos e respirações criaram uma cadência que fez o público se sentir dentro da cena, não como voyeur, mas como testemunha de um episódio recheado de significado. A trilha incidental ainda guiou a emoção sem tirar o foco da história. Isso tudo diante de uma evidente contenção de custos da Globo, vide a pouca quantidade de figurantes, algo recorrente em todas as externas da teledramaturgia atual da emissora. Ou seja, o diretor precisa se virar ainda mais com o que tem.  

"Dona de Mim" vem apresentando bastante falhas no enredo central, mas tem um conjunto de qualidades inquestionável e que sempre sobressai em momentos como o da abordagem da violência, que equilibra crítica social, impacto visual e profundidade emocional, onde não existe populismo e nem maniqueísmo, e, sim, uma abordagem de temas espinhosos com sensibilidade artística e responsabilidade narrativa. Não é uma tarefa fácil.