A atual novela das onze, dirigida por Vinícius Coimbra, está em plena reta final e a produção se mostrou um bom folhetim, embora não tenha repercutido e nem envolvido tanto quanto prometia. A curta duração das cenas também deixou muito a desejar e o desenvolvimento de algumas tramas ficou devendo. Porém, um dos trunfos da história escrita por Mário Teixeira (com argumento de Márcia Prates) foi a exposição nua e crua de um Brasil que infelizmente não mudou tanto assim ao longo de pouco mais de 200 anos.
As situações apresentadas como pano de fundo de alguns personagens e núcleos, ainda que muitas vezes não conseguindo ser aprofundadas como mereciam, servem para observar que ainda há inúmeros 'resquícios' da época de 1808, incluindo alguns comportamentos e hábitos que não mudaram quase nada. Desigualdade, racismo, homofobia, exploração dos governantes, suborno, corrupção, estupro, abuso de poder, justiça que não tem nada de justa, enfim, não falta exemplo na história do início do século XIX que segue sendo observado nos dias atuais.
Logo no início de "Liberdade, Liberdade", Joaquina (Andreia Horta) ficou horrorizada ao conhecer a chamada 'parte suja' de Vila Rica. A área era imunda, repleta de escravos famintos em condições sub-humanas. Rubião (Mateus Solano), intendente da Coroa Portuguesa, com o intuito de impressionar a sua 'amada', fez questão de distribuir comida e prometeu melhorar o local.
A atitude do vilão virou algo natural hoje em dia. Afinal, é exatamente isso que vários políticos fazem em época de eleições ou então quando há grandes eventos, como é o caso das Olimpíadas atualmente. É feita uma 'limpeza' ou uma benevolência momentânea, que logo acaba quando 'tudo volta ao normal'.
A indignação da população com os constantes aumentos de impostos foi outro ponto abordado na trama. A Coroa Portuguesa exigia cada vez mais auxílio financeiro e as pessoas não viam o retorno desse dinheiro em melhorias. Seguindo as ordens de Rubião, o coronel Tolentino (Ricardo Pereira) e seus guardas iam às casas e ameaçavam os devedores. Atualmente, claro, não há mais esse tipo de atuação e o Brasil deixou de ser colônia de Portugal. Entretanto, o povo segue pagando impostos exorbitantes e sem qualquer tipo de retorno em transporte, saúde, educação, segurança, etc. O governo brasileiro virou a 'Coroa', teoricamente. E vale citar as milícias, uma vez que criminosos atuam em várias áreas do país, intimidando moradores e cobrando taxas financeiras em prol de supostas 'proteções'. No RJ, por exemplo, houve um caso recente onde até a Força de Segurança Nacional, enviada para as Olimpíadas, se viu refém das ameaças desses bandidos.
A escravidão observada na história, pelo menos, foi abolida. Embora o Brasil tenha sido o último país a acabar com essa prática repugnante e ainda tenha algumas fazendas distantes explorando trabalhadores, essa questão se enquadra em um dos poucos casos que realmente mudaram por completo ao longo destes mais de 200 anos. Porém, o racismo está longe de ser extirpado, mesmo sendo considerado crime desde a Constituição de 1988. O preconceito visto na novela, onde o negro é considerado um ser inferior e humilhado constantemente, persiste e muitas vezes de forma velada. É necessário até citar os casos de descriminação sofrido por Taís Araújo, Sheron Menezzes, Cris Vianna e Maria Júlia Coutinho no ano passado. As quatro foram xingadas na internet e fizeram questão de denunciar os agressores ---- nesta semana, inclusive, a nova vítima foi Preta Gil.
Outra situação observada no folhetim é o estupro, incluindo, claro, a agressão contra a mulher. Além da cena em que o feitor Malveiro (Bruce Gomlevsky) violenta a escrava Jacinta (Dani Ornellas), também foi exibido o aterrorizante momento em que Terenciano (Jackson Antunes) espanca e estupra Dionísia (Maitê Proença), sua própria esposa. O coronel Tolentino violentou uma prostituta, provocando a ira de Virginia (Lília Cabral), e até a heroína Joaquina quase sofreu essa violência quando foi sequestrada, mas conseguiu derrubar o agressor e escapar. Esses instantes de horror tinham tudo para ficar no passado. Entretanto, lamentavelmente, ainda há inúmeros casos de estupro e agressões a mulheres em pleno século XXI. Como esquecer o recente caso do estupro coletivo, onde uma adolescente foi atacada por mais de vinte homens? Algumas evoluções precisam ser mencionadas, como a Lei Maria da Penha (criada somente para punir homens que batem em mulheres), por exemplo. Mas, a cultura machista segue forte, representando um imenso muro a ser derrubado.
E, já na reta final do folhetim, a questão da homofobia se mostrou através do romance de André (Caio Blat) e Tolentino. O filho de Raposo (Dalton Vigh) acabou denunciado por Gironda (Hanna Romanazzi) --- ironicamente uma prostituta, vítima costumaz de preconceito ---, implicando diretamente na sua prisão por sodomia, crime de lesa-majestade, cuja punição é a forca. Chamado de fanchona e pederasta, o rapaz passou a ser uma figura horrorizada, alvo do desprezo absoluto da sociedade. A homossexualidade não é mais crime há muito tempo e houve uma diminuição considerável do preconceito ao longo dos anos. Ou seja, é inegável a evolução comparada ao período da novela. Todavia, ainda há uma forte resistência ao amor pelo mesmo sexo, principalmente dos religiosos fanáticos, que consideram isso 'anormal' e 'contra os ensinamentos de Deus'. Vide a dificuldade que os autores têm em explorar esses romances na teledramaturgia ---- a maior ousadia foi dada somente em 2015, com o beijo de Félix e Niko em "Amor à Vida". Houve até uma tentativa (fracassada) de boicote ao capítulo que exibiu a cena de sexo gay na trama das onze. É necessário mencionar também os vários casos onde homens e mulheres são espancados e mortos simplesmente por serem homossexuais. Isso em pleno 2016.
"Liberdade, Liberdade" está perto do seu fim e, sem dúvida, um dos acertos da novela foi ter explorado questões que ainda seguem vivas na sociedade brasileira, despertando a reflexão em torno da pouca evolução ao longo de todo esse tempo. Mais de 200 anos se passaram desde a história contada pelo folhetim e é triste constatar que muitas situações continuam praticamente as mesmas, com raras exceções. Corrupção, violência, estupro, racismo, impostos exorbitantes, entre outras questões, apenas comprovam que o Brasil não mudou tanto quanto parece, infelizmente.
Que texto EXCELENTE, Sérgio! Nossa, um dos seus melhores.
ResponderExcluirEsse texto deveria ser postado num jornal.
ResponderExcluirUm texto preciso e exemplar.Fiquei até sem palavras.
ResponderExcluirNão gostei da novela, mas se teve uma coisa interessante foi isso mesmo que vc bem detalhou no texto. Podemos ver que muita coisa continua a mesma e o quanto somos parados no tempo.Triste.
ResponderExcluirPerfeita a sua colocação.Grata surpresa esse texto.
ResponderExcluirOlá,Sérgio...pode ser que eu esteja "falando" besteira, mas,penso , sim, que o folhetim tem esse poder mimético de imitar fatos ou acontecimentos sociais e esses funcionar como informação e entretenimento e o autor ao inserir temas - ou, reflexos da- atualidade em Liberdade, Liberdade , só veio nos demonstrar que, realmente e definitivamente, muita coisa não mudou , como parece, ou que não houve transformações de grande monta, se formos comparar o século XIX da história e os dias atuais, conforme os diversos exemplos descritos em sua bela análise...
ResponderExcluirFeliz semana,belos dias, abraços!
Que texto maravilhoso! Jogou a verdade na cara de muitos.
ResponderExcluirÉ realmente triste constatar que quase nada mudou. É um absurdo que as situações expostas na novela continuem tão atuais. Queria citar tb o triste caso do jogador Daniel Alves que recebeu uma banana e saiu de campo sendo chamado de "macaco". A gente não vai pra frente enquanto existir esse tipo de coisa.
Essa sua crítica é impecável e um verdadeiro soco na cara.Meus sinceros parabéns.
ResponderExcluirQue ótimo texto, Zamenza! Detalhou muito bem que realmente o Brasil não mudou praticamente nada nesses mais de 200 anos. Parabéns pela crítica.
ResponderExcluirReflexão mais do que apropriada a levantada por você. Aplausos!
ResponderExcluirSérgio, querido, desculpe incomodar mais uma vez!
ResponderExcluirVi hoje a tarde a cena da confissão de Capitu em Laços de Família. E não me lembrava de quanto essa cena era bonita.
Só consegui lembrar de você dizendo que a Capitu é a mocinha da novela. E é mesmo! Daquelas bem clássicas. Mãe de família, boa moça, provedora do lar, tem uma paixão adolescente e ainda dois canalhas no pé. Fred também honra o posto de mocinho. Pai dedicado e casado com uma megera. Maneco fugiu dos padrões, normalmente as mocinhas de suas novelas são as filhas das Helenas. Ai eu fiquei pensando se a Capitu e o Fred eram os mocinhos o que eram Camila e Edu?
Por falar nele hoje, a Alma, percebeu que há algo de errado com a Camila, ficou bem estranho o fato do cara ser um MÉDICO e tá todo relaxado. Ele pra variar mandou a tia pro inferno. Coincidência ou não, ele cresce junto com a Camila e enfrenta a tia pela primeira vez pra ficar do lado dela quando a Alma tenta com que ele faça uma viagem.
Olá,
ResponderExcluirGostei muito do seu texto.
Eu não vi nenhum capítulo da novela, por isso não posso falar muito sobre ela.
Eu gosto muito de novelas com temas históricos.
Abrçs
Blog: Autora Marcia Pimentel
Adorei o seu post Sérgio! Infelizmente o preconceito existe seja racial, por orientação sexual e não vejo a sociedade evoluída para banir isso.
ResponderExcluirbig beijos
Um post necessário e a Preta Gil foi o alvo da vez do racismo agora.Parabéns.
ResponderExcluirÉ uma triste constatação e vc soube abordar ponto a ponto sobre o atraso desse país usando a trama ficcional.
ResponderExcluirAlgo a comentar...
ResponderExcluirExcelente post sobre "Liberdade Liberdade".
Se você estudar de forma aprofundada a história do Brasil aquém daquela ensinada nas escolas, vai descobrir coisas mais bizarras do que no princípio imaginamos.
Desde o princípio, as intenções de Portugal com o Brasil não era o de povoa-lo e sim de explorá-lo, diferentemente do que fez a Inglaterra com os Estados Unidos, que era uma colônia de povoamento.
Os primeiros habitantes do Brasil, tanto homens como mulheres, era o que de pior tinha no reino português. Eram mandados para o Brasil nas primeiras expedições, todos os banidos do reino como forma de punição. Muitas prostitutas eram mandadas com fins de satisfazer as "necessidades" dos homens. Aliás a minissérie "A Muralha" de Maria Adelaide Amaral, retratou um pouco dessa história. E é claro que essa gênese do povo brasileiro encontra reflexos na conjuntura brasileira ao longo dos séculos.
Todos os problemas sociais apresentados na trama continuam a existir sim, inclusive, muitos até se agravaram. Isso porque, muitos dos tais problemas são intrínsecos ao homem, que está cada vez mais irreverente. Entretanto, acredito que houve mudanças drásticas em outras questões. Muitas delas são tratadas de formas absolutamente diferentes, que nem sequer imaginava-se há 200 anos atrás. Talvez porque temos uma sociedade mais amadurecida pelos esculachos da vida.
Bom Sérgio, sei que aqui tenho a "liberdade" de expressar minha opinião sobre a temática gay. Você frisa que há uma forte resistência por parte dos religiosos em relação ao amor pelo mesmo sexo. Posso afirmar que NÃO HÁ resistência nenhuma ao amor, que é o mais nobre dos sentimentos. O problema é o sexo entre iguais. É anômalo? É. É contra "os ensinamento de Deus"? É. É 'pre-conceito' por parte dos religiosos? Não. Trata-se um conceito de Deus e que passa pelo crivo da fé, mas isso é um outro debate. Agora como disse no post passado sobre essa novela: Se tirarmos Deus da jogada, então, tudo é válido. Liberdade total. Não existe pecado.
Mas a homossexualidade é algo real e todos os homens devem ser respeitados na sua orientação sexual. Ser gay não é crime e ponto final. Entretanto, já comentei aqui diversas vezes, que os autores devem inserir em seus enredos, os gays como pessoas normais, que tem seus romances, suas paixões, seus conflitos, que não seja apenas preconceitos, homofobias, aceitação, ser ou não ser, etc... Deve ter romance gay nas novelas? Claro que sim. Mas toda temática até hoje apresentada, apesar de real, já virou um clichê batido.
Bom querido Sérgio, "Liberdade Liberdade" infelizmente pouco repercutiu, mas pra quem acompanhou atentamente pode perceber e refletir toda essa temática nada leviana discutida no post. Foi uma ótima novela.
Beijos...
Mt obrigado, Denner!
ResponderExcluirFico honrado, anonimo!
ResponderExcluirFico feliz, Rafaella.
ResponderExcluirInfelizmente, William!
ResponderExcluirObrigado, anonimo.
ResponderExcluirNão falou besteira alguma, Felis. Abraços!!
ResponderExcluirMt obrigado, Pâmela. E é uma constatação triste mesmo, né? Evoluímos mt pouco... Boa menção a sua, inclusive. Bjsss
ResponderExcluirMt obrigado, Galdino!
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado, Decio. abçs
ResponderExcluirValeu, Karen!
ResponderExcluirQue desculpa, Pâmela! Venha aqui e escrava tudo o que quiser sempre. E eu vi essa cena, aliás, revi. Foi lindíssima mesmo e os dois eram os mocinhos da novela, por mais que o Maneco nunca use esse artifício. Em Laços de Família ele acabou usando mesmo sem perceber. Capitu sofreu até o fim e Fred também, honrando a posição de mocinhos. E a Alma era um poço de egoísmo. Ela que tanto torceu por esse romance será a primeira a tentar fazer o Edu largar o barco quando o câncer se revelar. Bjão!
ResponderExcluirObrigado, Marcia, e sem problemas. Bjssss
ResponderExcluirTb não vejo, Lulu. bjssss
ResponderExcluirPois é, Felipe, até tive que atualizar essa informação no texto.
ResponderExcluirMt obrigado, Ernane.
ResponderExcluirFico feliz que tenha gostado, F Silva. E mais um ótimo comentário seu, fazendo até boa lembrança de A Muralha. E discordo que homossexualidade seja pecado pra Deus pq ele nunca disse nada do tipo, mt menos na Bíblia. Isso é um discurso de ódio, infelizmente, multiplicado por vários pastores de quinta categoria e até mesmo a igreja agia assim, o que mudou com o papa Francisco. Mas isso é outro debate mesmo e vc tem toda liberdade aqui sim. A novela não teve repercussão mesmo, mas foi uma boa novela. Só que pra mim fica nisso: uma boa novela. Poderia ter sido infinitamente melhor, até pelo contexto que a cercava. Mas aguardemos o grande final. bjsss
ResponderExcluirAlgo a complementar...
ResponderExcluirSérgio, há um grande equívoco seu no comentário acima ao afirmar que a homossexualidade não é pecado pra Deus e que não há nada do tipo na Bíblia. O termo "homossexual" e nem "homossexualidade" não é encontrado na Bíblia, justamente por não haver o reconhecimento da cópula sexual(coito) entre iguais, apenas entre macho e fêmea. Entre os iguais, a prática é considerada como sendo um erro de propósito(pecado, torpeza, pornéia). Apesar do tema ser considerado ultrapassado pela sociedade moderna, continua sendo válido no âmbito da fé e está registrado na Bíblia sim, e tem muito homossexual que está cônscio disso. A esses eu aplaudo.
O que é importante frisar, é que não deve haver motivos para o ódio e a intolerância. Ambas as partes tem que buscar o caminho da fraternidade, da caridade e da tolerância, e conviver com as diferenças. Esse é o discurso de muitos pastores evangélicos e do Papa Francisco, que aliás, não aprova a prática, apenas segue o exemplo do Cristo.
A teledramaturgia tem que seguir esse caminho, desde que fujam do velhos clichês batidos do tema. Vamos aguardar e torcer.